Por: Humberto Fernandes

Como bons fãs de esportes, os membros de TheSlot.com.br adoram o passado do hóquei no gelo. É por isso que nessa revista existem seções destinadas a contar pedaços de sua riquíssima história, como a intensa pesquisa de J.J. Júnior, o Mec, para esmiuçar os anos da WHA e os detalhes dos Campeonatos Mundiais de Juniores, à luz do trabalho de Eduardo Costa.

Nas últimas semanas dois companheiros de redação mergulharam no passado da NHL para reencontrar o que houve de melhor em matéria de jogadores e times. Marco Aurelio Lopes tem explorado brilhantemente a vida e a carreira de grandes mitos do esporte, como Gordie Howe e a Linha de Produção. Enquanto isso, Fabiano Pereira, adorador da idéia, decidiu resgatar grandes equipes, começando pelo inesquecível New York Rangers de 1994.

Desde então concluí que seria interessante abordar os grandes jogos da história da NHL. Essa seção começa nesta edição de TheSlot.com.br, relembrando o famoso Bloodbath, o duelo entre Detroit Red Wings e Colorado Avalanche que na segunda-feira completou dez anos. A seção também termina aqui, porque depois do Bloodbath os outros são meros jogos de hóquei, alguns com mais emoção, outros menos. É claro que essa é uma opinião pessoal e não tem a pretensão de atingir torcedores de outras equipes.

O Bloodbath é o jogo da minha vida. Sua história já foi contada por diversas vezes ao longo das 150 edições de TheSlot.com.br, mas desde o começo de nossa atividade como colunistas de hóquei eu imaginei o dia em que o jogo completaria dez anos. E esse é o último artigo em homenagem ao meu momento favorito como fã do esporte — e ao amigo que proporcionou esse momento.

Marcelo Constantino e eu nos conhecemos por volta do ano 2000 através de uma lista de discussão por e-mail, a NHLBR original, que nada tem a ver com a atual, exceto pelo nome. Eu era um fã que há pouco havia ultrapassado a barreira dos jogos de hóquei no computador para a realidade do esporte, e na lista encontrei o Marcelo, que desde aquela época já era referência sobre Detroit Red Wings no Brasil, equipe pela qual eu torcia.

Houve simpatia imediata da minha parte e acredito que da parte dele também. Marcelo me ensinou a história recente da equipe, com todos os detalhes das conquistas de 1997 e 1998 e a razão da rivalidade entre Red Wings e Avalanche, incluindo o Bloodbath, que imediatamente tomou conta dos meus pensamentos sobre hóquei no gelo. Eu simplesmente não conseguia imaginar a grandeza daquele jogo e assisti-lo passou a ser o meu objetivo. Eu só conhecia uma pessoa que tinha cópia dele: Marcelo.

Com alguma insistência, consegui que ele me enviasse cópias de todas as suas nove fitas VHS com jogos dos Red Wings entre 1997 e 1998. Só assim pude ver o meu time bicampeão da Copa Stanley. Mas nem isso se comparava ao Bloodbath, que estava em uma das fitas. A partir dessa passagem nossa amizade se estabeleceu definitivamente. Hoje somos companheiros de redação em TheSlot.com.br e comissários de uma liga virtual de hóquei.

Em abril de 2005 adquiri a coleção de DVDs contando a história da equipe. "A Celebration of Champions" trazia os cinco jogos favoritos dos fãs, escolhidos através de votação na página oficial da equipe, os documentários de cada uma das três conquistas recentes e outro sobre a história do time. No ano passado finalmente retribuí o favor, enviando cópias dos DVDs para o Marcelo.

Decidi contar um pedaço da história dessa amizade porque os fãs dos Red Wings elegeram o Bloodbath como o maior jogo da história da equipe. Por causa daquele jogo, dez anos atrás, em que exercia-se um culto à inimizade na maior e mais sangrenta rivalidade que o hóquei no gelo já viu, nasceu uma amizade.

A Marcelo Constantino, o meu muito obrigado.

Na apresentação do Bloodbath em "A Celebration of Champions", Mickey Redmond, comentarista de TV dos Red Wings há 22 anos, que trabalhou naquela partida, declarou:

"Não são muitas as pessoas que se lembram de datas específicas de jogos de temporada regular, mas mencione a noite de 26 de março de 1997 e todo torcedor do Red Wings sabe exatamente o que aconteceu. Entre tantas conquistas de Copa Stanley e prorrogações emocionantes para escolher, os fãs escolheram esse duelo como seu favorito — e é fácil ver por quê. Esse jogo teve um pouco de tudo: rivalidade, retribuição e uma prorrogação dramática. [...] Darren McCarty, o herói dessa noite, diz que esse jogo é sua memória favorita".

Na noite anterior ao jogo, o Avalanche havia derrotado o Hartford Whalers por 4-0, com 46 defesas de Patrick Roy. Cansados pela partida e pela viagem, na reta final da temporada regular, o correto seria descansar alguns dos principais jogadores, como o goleiro, mas Marc Crawford, então o treinador, decidiu que não, porque seria importante conquistar o Troféu dos Presidentes e garantir o mando de gelo nos playoffs.

O Avalanche era o time a ser batido àquela altura. Roy vinha em sua melhor forma e o ataque da equipe se impunha, com oito jogadores com 18 ou mais gols, a maior marca da NHL então. As três partidas anteriores entre as equipes terminaram com vitórias relativamente fáceis dos Avs.

Era a primeira partida de Claude Lemieux na Joe Louis Arena desde o tranco covarde em Kris Draper nos playoffs do ano anterior. Desde então os Red Wings sonhavam com a revanche, mas nada havia sido feito. Até então tudo se resumia a falatório, sem ação. No dia do jogo os jornais de Detroit publicaram artigos e imagens sugerindo a eventual retaliação. Bob Wojnowski, colunista do Detroit News, revelou no livro "Blood Feud: The inside story of pro sports' nastiest and best rivalry of its era", de Adrian Dater, uma conversa com McCarty na véspera da partida. Segundo ele, McCarty disse: "Eu aprendi que a melhor hora para se vingar é quando eles não esperam por isso. Ele joga há muito tempo, sabe que eventualmente alguma coisa vai acontecer. A carta trunfo é que ele não sabe quando."

Também no livro, Dater relata o péssimo momento vivido por Mike Vernon, então goleiro e maior decepção dos Red Wings na temporada. Vernon pensava que somente uma briga no gelo lhe traria o apoio dos torcedores, mas ele nunca havia brigado em sua carreira. Pudera: Vernon era um dos menores e mais franzinos goleiros da liga.

Quando pisou no gelo pela primeira vez — e em todas as outras — Lemieux foi vaiado pela torcida. Mas o começo da partida dava sinais de que seria mais uma daquelas noites em que os Red Wings lutavam e perdiam. Não demorou muito para que os Avs abrissem o placar, em gol de Valeri Kamensky.

Os trancos tornavam-se mais duros à medida que o jogo prosseguia, principalmente de jogadores dos Wings, e então aconteceram as primeiras brigas. Jamie Pushor e Kirk Maltby, de Detroit, brigaram respectivamente contra Brent Severyn e Rene Corbet, do Colorado. Seria apenas a preliminar do grande combate da noite, que alteraria para sempre o curso da rivalidade entre as duas equipes.

No penúltimo minuto do primeiro período, Peter Forsberg acertou um tranco em Igor Larionov e em seguida, inexplicavelmente, também um soco. Larionov retribuiu, desferindo dois socos por trás da cabeça do sueco e derrubando-o ao chão. Nesse momento os demais jogadores se alinhavam, em pares, olhando a improvável briga entre os europeus. Apenas dois jogadores não estavam alinhados, justamente McCarty e Lemieux. McCarty era vigiado de perto pelo auxiliar Ray Scapinello e o defensor Adam Foote o segurava pela camisa, enquanto se agarrava a Brendan Shanahan.

Então veio o trovão. Repentinamente, McCarty se desvencilhou de Foote e partiu em direção a Lemieux, olhou o adversário em seu rosto por alguns segundos e aplicou-lhe um soco com a força de todos os torcedores dos Red Wings espalhados pelo mundo. Lemieux foi ao chão, recuando-se em sua famosa posição de "tartaruga", protegendo o rosto, enquanto McCarty esmurrava suas costas e a parte de trás de sua cabeça.

Como se os árbitros concordassem que aquela era a vingança do mundo do hóquei sobre um ato covarde de um jogador sem classe, não intercederam por Lemieux, o que seria o procedimento padrão. Vendo tudo aquilo, Roy abandonou sua rede com a intenção de ajudar seu companheiro, mas antes que ele pudesse tocar em McCarty, Shanahan apareceu literalmente voando e se chocou contra o goleiro. Foote se juntou ao trio e Shanahan se esforçava para segurá-los enquanto McCarty arrastava Lemieux para as bordas logo abaixo do banco de reservas dos Red Wings, onde continuaria a surra, desferindo duas fortes joelhadas no rosto do inimigo. Vernon, enfim, tinha a sua desejada chance de reconquistar os fãs. Ele abandonou o gol e foi em direção ao tumulto, até que Roy o escolheu para "dançar" e os dois iniciaram a mais bela briga de goleiros já vista. Roy era muito mais forte que Vernon e fez valer sua força num primeiro momento, mas Vernon surpreendeu com um soco de esquerda que provocou um corte no rosto do lendário goleiro. No fim, o goleiro dos Red Wings se agarrou a Roy e o derrubou, causando total êxtase na torcida.

Nas Olimpíadas de Inverno de 1998, Roy diria a Shanahan que aquela colisão machucou seu ombro esquerdo, de forma que ele nunca mais foi o mesmo. Essa é uma das lembranças de Shanahan publicadas por Dater. O ex-jogador dos Red Wings, hoje nos Rangers, também conta no livro que McCarty gritou para que ele o ajudasse a ficar livre, para então pegar Lemieux. Shanahan segurou Foote, deixando o caminho livre. No momento seguinte, impediu que Roy fosse o terceiro homem na briga entre McCarty e Lemieux.

Vernon realmente reescreveu sua relação com a torcida a partir daquele momento, literalmente lutando por sua posição. Segundo ele, nunca esteve tão cansado na vida quanto após a briga com Roy. Sua reação foi de dizer a Chris Osgood, o reserva, que se ajeitasse para continuar o jogo, porque ele seria expulso pela briga. Ele queria ser expulso pelo cansaço. Porém o árbitro Paul Devorski não expulsou os goleiros.

Lemieux levantou-se do local onde fora surrado e as câmeras mostraram o seu rosto ensangüentado. No vestiário, foram necessários de dez a quinze pontos para fechar um corte. O sangue de Lemieux, Roy e Forsberg manchou o gelo da Joe Louis Arena, mas a torcida aprovou a atitude do time no melhor estilo "olho por olho, dente por dente".

Trezentos e um dias depois, os Red Wings finalmente se vingaram de Lemieux.

Prosseguindo em seus julgamentos equivocados, surpreendentemente Devorski não expulsou McCarty da partida, penalizando-o apenas com quatro minutos. Oito anos depois do jogo, Devorski reconheceria o erro, dizendo que hoje expulsaria o jogador e os goleiros. Como faltavam menos de dois minutos para o fim do período, McCarty foi autorizado a se dirigir antecipadamente ao vestiário, sendo aclamado pela torcida com uma das mais barulhentas ovações já ouvidas na arena.

Dez minutos depois o jogo recomeçou, para ser interrompido em seguida com a briga entre Vladimir Konstantinov e Adam Deadmarsh. O primeiro período terminou com a liderança dos Avs no placar, mas não em espírito coletivo e determinação. No vestiário dos Wings, uma silenciosa sensação de satisfação.

No segundo período os jogadores dos Avs buscaram dar o troco. Shanahan e Foote se enfrentaram com quatro segundos. Em seguida Aaron Ward e Severyn seriam os únicos expulsos da partida por brigar. Tomas Holmstrom apanhou de Mike Keane, mas arrancou sangue do rival. Por fim, Deadmarsh encarou McCarty, mas não conseguiu derrotá-lo. Enquanto isso, Lemieux, de volta ao jogo com curativo no rosto, jamais esboçou qualquer tentativa de retaliação contra McCarty, o que, segundo Dater, o fez perder parte do respeito de seus companheiros.

Entre uma briga e outra, um festival de gols. Os Red Wings chegaram ao gol de empate com Sergei Fedorov, em belo passe de Larry Murphy. Kamensky colocaria os Avs em vantagem novamente marcando em vantagem numérica de dois homens, em chute defensável que Vernon aceitou. Em contra-ataque rápido após sair do banco de penalidades, Martin Lapointe empataria a partida, após troca de passes com Slava Kozlov. Pouco depois Corbet, também em contra-ataque, e Deadmarsh, em gol polêmico, proporcionariam aos Avs a vantagem de dois gols no placar. Antes do fim do período, Nicklas Lidstrom acertaria um chute fulminante após um cara-a-cara, diminuindo a diferença.

No terceiro período Kamensky completaria seu hat trick, antes que McCarty acertasse a trave de Roy. O jogo parecia decidido, mas os Red Wings não se entregaram. Com pouco mais de 11 minutos para o fim, Lapointe estava no lugar certo e na hora certa para aproveitar um rebote e marcar em vantagem numérica. Trinta e seis segundos depois, Shanahan empataria a partida após um gol de viradinha, em que chutou nas costas de Roy e o disco entrou. A torcida explodiu, cantando "Let's Go Red Wings!" até o fim. Com 5-5 no placar, o jogo foi para a prorrogação.

Logo no começo da prorrogação, Shanahan recebeu passe de Larionov e encontrou um companheiro livre próximo ao gol. Era McCarty, que chutou para marcar o gol da vitória.

McCarty havia se vingado por Draper e pessoalmente derrotado o Avalanche. "Foi como um filme", disse McCarty. "Para nós, Hollywood não poderia ter escrito um roteiro melhor. Foi perfeito. Mudou nosso time."

O vingador McCarty foi chamado de volta ao gelo para ser anunciado como a primeira estrela da partida. No dia seguinte, Mitch Albom publicaria em sua coluna que "Darren McCarty nunca pagará por outra refeição nessa cidade." De fato, a torcida do Detroit é devota de McCarty desde o dia 26 de março de 1997, a noite em que os Red Wings finalmente derrotaram o Colorado e estabeleceram o caminho para a tão sonhada conquista da Copa Stanley naquele mesmo ano.
Humberto Fernandes considera a cidade de Viçosa, MG, como uma das sete maravilhas da humanidade, ao lado de hóquei no gelo, vodka, mulheres, livros, amigos e outra vodka, definitivamente não nessa ordem.
Arquivo TheSlot.com.br
Darren McCarty esmurra Claude Lemieux pelo bem do hóquei no gelo. A tão sonhada vingança aconteceu a dez anos atrás.
(26/03/1997)
Arquivo TheSlot.com.br
O franzino Mike Vernon sabia que algo drástico precisava ser feito para mudar sua reputação em Detroit. A briga contra Patrick Roy foi o princípio da corrida vitoriosa pelo Troféu Conn Smythe.
(26/03/1997)
Arquivo TheSlot.com.br
Eternamente ídolo da torcida, McCarty derrota o Avalanche na prorrogação do Bloodbath. Momento inesquecível.
(26/03/1997)
Edição Atual | Edições anteriores | Sobre TheSlot.com.br | Comunidade no Orkut | Contato
© 2002-07 TheSlot.com.br. Todos os direitos reservados. Permitida a republicação do conteúdo escrito, desde que citados o autor e a fonte.
Página publicada em 28 de março de 2007.