Por: Thiago Leal

Imagine aqueles time com padrão encardido, números costurados nas costase craques em forma de barril de chope, com barriga saliente e um pique de fazer inveja a um Chevette velho. Não, não estou falando do Ronaldo Fenômeno. Falo daquele timaço cuja escalação é Severino, o porteiro, no gol; Zé da Penha e Charuto nas laterais, Ceará e Pira na defesa; Cabidela de volante; no meio-campo Ângelo da Caninha 51, Franlito e o garçon (por profissão) Damião. No ataque Bode Zé e o açougueiro Tatuí. Nome do time? Misto Quente FC. Adversário? Seleção do Sindicato de Operários das Indústrias do Ermelino Matarazzo.

O jogo é em dois tempos de quinze minutos e depois todo mundo pro boteco. O mais provável é que com dez minutos, todo mundo esteja morto e peça arrego pra tomar cerveja e comer churrasco no Sombreiro Bar — um boteco que não tem teto, mas fica embaixo de um pé de castanhola. O lema é: Lá fora chove. Aqui só pinga. Seu Agnelo, pai de Ângelo (Agnelo é anagrama de Ângelo, retardado!), está limpando os copos esperando o jogo terminar. E o rádio tá sintonizado na Série B do Campeonato Paulista porque o Radium de Mococa tá enfrentando a Inter de Limeira pela Série B do Paulistão.

Calma, este colunista não está bêbado (ainda) e nem mandou pra TheSlot.com.br um texto que deveria ser originalmente publicado no Futebol Interior. Esta introdução de uma ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência apenas serviu para ilustrar o que faz o esporte mais popular no Brasil ser tão... querido. O futebol não seria o esporte do povo se não fosse manifestações como essa descrita acima, o famoso futebol de várzea. É normal que os esportes mais populares sejam praticados na rua ou em terrenos baldios.

Hóquei cult
E o que isso tem a ver com hóquei no gelo? Pond hockey. Hóquei no gelo jogado em lagos congelados em Ontário ou Minnesota por moleques depois da escola ou por marmanjos que não têm mais o que fazer. Embora não seja praticado numa superfície tão fácil quanto a rua ou um descampado de terra batida, o frio norte americano permite que o hóquei no gelo seja praticado de forma amadora. De Wayne Gretzky a Sidney Crosby, toda criança canadense começou a jogar hóquei brincando na vizinhança onde morava, mais ou menos como na música "Hit Somebody! (The Hockey Song)", de Warren Zevon. E assim como no Brasil se desenvolveu campeonatos de futebol de várzea, nos Estatos Unidos e no Canadá se disputa campeonatos de pond hockey e um documentário sobre o assunto, chamado Pond Hockey, foi dirigido por Tommy Haines e conta com a participação de craques da velha guarda como Neal Broten a jovens como Patrick Kane.

Outro filme que abordou o pond hockey e chegou a passar no Brasil foi Mystery, Alaska, aqui traduzido como Esquentando o Alasca onde alguns jogadores amadores do vilarejo de Mystery disputam um jogo contra o New York Rangers (composto por jogadores fictícios).

Se você não assistiu a Pond Hockey, o filme, (e tenho certeza que não assistiu), sugiro que assista e entenda um pouco mais do folclore desse que é o melhor esporte do mundo. Daí você pode perceber por que Ryan Getzlaf ou Milan Lucic estão mais para loucos de que para atletas. Mas não baixe o filme. Compre pelo Amazon.com ou o FBI vai bater na sua porta para acertar as contas com você. E o FBI sabe onde você mora! Esteja avisado!

A importância do pond hockey é óbvia: certa vez o velho lobo Mário Jorge Zagallo disse que ninguém joga futebol como Brasil e Argentina porque as crianças brasileiras e argentinas não vão a escolinhas aprender futebol. Elas aprendem brincando, na rua, por prazer. Da mesma forma que você colocou seus chinelos no canto da rua para deliminar uma trave e jogar futebol com seus amigos, é comum que garotos canadenses usem seus próprios sapatos ou latões de lixo para delimitar uma trave e jogar hóquei em lagos congelados ou mesmo na rua, por mais difícil que seja se improvisar um jogo de hóquei. O próprio esporte hóquei no gelo começou com uma brincadeira desse tipo, com pessoas patinando em lagos congelados e batendo com pedaços de pau em estrume congelado.

Gretzky começou a jogar hóquei com seus irmãos e amigos em um rinque improvisado no seu quintal. Jean-Guy Lemieux costumava molhar o jardim para que as poças d'água congelassem e seus filhos Mario, Richard e Alain pudessem jogar. A carreira de Patrick Roy começou dessa mesma forma. Joe Sakic começou a brincar na vizinhança aos quatro anos de idade após assistir ao Vancouver Canucks. John Tavares, que ainda jogou futebol e lacrosse na infância, também começou a jogar a patir de experiências com pond hockey.

O colunista da ESPN Jim Caple listou o pond hockey como uma das 101 experiências desportivas que você tem que tomar antes de morrer e definiu o esporte como "jogado da forma que o hóquei foi criado para ser jogado".

Hoje, assim como aqui no Brasil se organiza campeonatos de futebol de várzea (como a Copa Brahma), os Estados Unidos e Canadá possuem campeonatos organizados de hóquei amador ao ar livre. A mística folclórica desse esporte, no entanto, está longe de se profissionalizar, já que o espírito de brincadeira é o que vale. Além do mais, enquanto houver crianças no Canadá, em Michigan ou Minnesota, haverá pond hockey. Não há como popularizar um esporte em grandes países se você deixá-lo trancado em ginásios.

Opção para épocas ou lugares mais quentes
Além do hóquei de lago, ou o hóquei ribeirinho, podemos assim dizer, o pond hockey, outra forma comum de hóquei amador é o hóquei de rua, street hockey. Com várias denominações como ground hockey ou ball hockey, o hóquei de rua é jogado sem patins, em quadras de concreto, estacionamentos ou até mesmo no meio da rua. É daí que vem uma "regra" do esporte: o grito de Car! (Carro!) que automaticamente para o jogo, pois os jogadores devem sair do meio da rua devido à incoveniente passagem de um automóvel. Um filme que tornou a cena de hóquei de rua famosa no mundo todo é O Mundo de Wayne, com direito à interrupção de jogo por causa de um carro e, claro, o grito de aviso. Hoje em dia o hóquei de rua tem até federação internacional e campeonato mundial — a República Tcheca é a campeã mais recente.

Hóquei de rua ou street hockey também pode ser uma forma de se referir ao hóquei jogado nas ruas com patins em linha, o chamado roller hockey que evoluiu para um esporte profissional disputado em ginásios, abraçado pela Federação Internacional de Hóquei no Gelo e pela Federação Internacional de Roller Sports e com grande participação brasileira. Mas o foco aqui não é o esporte profissional, mas sim o amador, jogado na rua. É uma opção para locais mais quentes, como a Califórnia. A estrela do Anaheim Ducks Bobby Ryan começou jogando hóquei em linha em Los Angeles, ainda bem guri, antes de migrar para os rinques de gelo e tornar-se um jogador promissor na OHL defendendo o Owen Sound Attack.

Hóquei amador e semi-profissional
Mas o hóquei amador norte-americano não é disputado apenas de maneira tão informal. Há campeonatos amadores mais organizados, em rinques cobertos nas dimensões da NHL. E há também os campeonatos semi-profissionais. Mais uma referência para quem gosta de filmes: Les Boys, o maior sucesso da indústria cinematográfica canadense (que infelizmente não chegou ao Brasil e tive que importar pelo Amazon.com) trata de um time amador no Quebec.

O hóquei amador geralmente organiza-se também através de ligas e associações em estados americanos, províncias canadenses ou mesmo em cidades, bairros, regiões etc. A maioria das associações de hóquei amador são voltadas aos menores, ou seja, a categorias de base. Mas boa parte das ligas como a Liga da Colúmbia Britânica ou a Liga de Michigan oferecem competições e programas recreativos para adultos montarem seus times e disputarem seus campeonatos. Nesse caso é o próprio atleta quem financia seu uniforme e equipamento e o time banca as despesas da competição.

Um evento interessante é um campeonato de carteiros que acontece desde 1977. No primeiro semestre deste ano, um time amador representando Montreal e treinado por Guy Carbonneau enfrentou um time amador representando Quebec com Michel Bergeron como treinador. Uma série de partidas entre as duas equipes foi realizada como parte de um reality show para valorizar a rivalidade entre as duas cidades: o programa doi chamado La Série Montréal-Québec e exibido pela TVA.

Thiago Leal descobriu uma banda chamada Hockey e uma chamada Hockey Night.
Dave Kapell
Cena típica de pond hockey em Minnesota.

Canadapondhockey.ca
Campeonato Canadense de Hóquei de Várzea 2008.

National Postal Museum
Nem a chuva, nem o vento, nem trancos: o Albany District Dutchmen, vencedor do campeonato de carteiros de 1997.

NARCH
Patinho: Bobby Ryan em Los Angeles, nos tempos que jogava hóquei em linha.

Edição Atual | Edições anteriores | Sobre TheSlot.com.br | Comunidade no Orkut | Página no Facebook | Contato
© 2002-10 TheSlot.com.br. Todos os direitos reservados. Permitida a reprodução do conteúdo escrito, desde que citados autor e fonte.
Página publicada em 14 de novembro de 2010.