Por: Thiago Leal

Histórias, nuances e curiosidades do Campeonato Mundial de Hóquei no Gelo da IIHF
Eis o verdadeiro Campeonato Mundial em termos de esporte coletivo. Não estou querendo puxar a sardinha para meu esporte preferido, mas o que posso fazer se a Copa do Mundo de Futebol, a Copa do Mundo de Rúgbi, a Liga Mundial de Vôlei ou o Campeonato Mundial de Bola ao Cesto não se iguala ao torneio da IIHF em termos de padronização, planejamento, organização e fórmula de disputa?

Primeiro, porque no Mundial da IIHF, a Federação Internacional de Hóquei no Gelo, temos uma Primeira Divisão, uma Segunda Divisão, uma Terceira Divisão, uma Quarta Divisão e uma Divisão Qualificatória. Isso o torna tão justo quanto os Campeonatos de clubes ao redor do mundo. Não corremos riscos de ver uma grande Seleção sem disputar um Mundial. Que graça teria a Copa do Mundo de Futebol se não tivéssemos Brasil, Argentina, Itália ou Alemanha? Por menor que seja, esse risco existe. Inglaterra e França ficaram de fora da Copa do Mundo de 94. A Holanda ficou de fora da Copa do Mundo 2002. Tudo bem que elas foram eliminadas porque foram incompetentes... mas o que é melhor numa Copa do Mundo? Ver Brasil x Turquia e Argentina x Nigéria, ou ter em campo a rivalidade de Brasil x Holanda e Argentina x Inglaterra? Com uma divisão fixa, a IIHF impede essas "injustiças". Dificilmente teremos Canadá, Rússia, República Tcheca ou Suécia fora da Primeira Divisão (chamada apenas de Campeonato Mundial).

Depois, porque o torneio é anual. Isso permite uma maior rivalidade entre as seleções. Os confrontos acontecem com maior freqüência, com atletas, em muitos casos, com sangue quente pelo que aconteceu no ano anterior. Imaginem como se sentiram os tchecos com o pentacampeonato da União Soviética, entre 1978 e 1983, com quatro destes torneios ganhos em cima da República Tcheca. O tricampeonato da República Tcheca, vencendo a Finlândia, que nunca ganhou o ouro, nas finais de 1999 e 2000. Ou o bicampeonato do Canadá em 2003 e 2004 em cima da Suécia.

E que tal o Canadá, "país do hóquei no gelo", que passou simplesmente 33 anos sem vencer o Campeonato, chegando a abrir mão de participação em alguns anos? Os canadenses sofreram com a Cortina de Ferro comunista, levando surras memoráveis da União Soviética, dando origem a uma lendária rivalidade que intercalava também com torneios profissionais, como a Summit Series e a Copa do Canadá. A rivalidade entre Canadá e União Soviética foi tão forte que até hoje é considerada a maior da história do esporte, com a Rússia herdando o legado soviético e mantendo acesa a chama do ódio entre canadenses e russos/soviéticos.

Muito antes da Copa do Mundo/FIFA
Enquanto Jules Rimet e a luxuosa e elitista FIFA sonhavam, a IIHF lutava para fazer as coisas acontecer. Fundada em 1908 como Ligue Internationale de Hockey sur Glace (Liga Internacional de Hóquei no Gelo), a IIHF deu já em 1910 a primeira tacada para o que seria o Campeonato Mundial de Hóquei no Gelo: em 1910 acontecia a primeira edição do Campeonato Europeu da IIHF, na Suíça, sede da Federação, premiando a Grã Bretanha como Campeã. A prata ficou com o Império Alemão pré-guerras mundiais e o bronze com a Bélgica. Num mundo com um panorama muito diferente, a Seleção da Boemia venceu o Europeu de 1911, com o Império Alemão e a Bélgica repetindo os postos, no torneio sediado em Berlim. A edição de 1912 foi disputada em Praga, então cidade do Império Austro-Húngaro. A Boemia venceu o Império Alemão pela segunda vez na corrida pelo ouro, enquanto a Áustria ficou com o bronze. O torneio foi subseqüentemente anulado pela IIHF pelo fato da Áustria não ser membro da Federação.

Em Munique 1913 a Bélgica ficou com o ouro, Boemia com a prata e Império Alemão com o bronze. A edição seguinte foi uma repetição de 1911, tendo a mesma sede e os medalhistas seguindo a mesma ordem. Foi o último Europeu em sete anos. Em decorrência da I Guerra Mundial, a competição parou de 1915 a 1920, voltando apenas em 1921, em Estocolmo, onde apenas Suécia e Tchecoslováquia disputaram, com vitória sueca.

A esta altura o hóquei no gelo já tinha seu Campeonato Mundial: os Jogos Olímpicos. O torneio serviu como Campeonato Mundial em 1920, 1924 e 1928, valendo três ouros ao Canadá. Vale salientar que a FIFA tentou, em vão, implementar a mesma idéia. Essa fórmula de Jogos Olímpicos/Campeonato Mundial foi repetida em 1932 (ouro para o Canadá), 1936 (ouro para a Grã Bretanha), 1948 (ouro para o Canadá), 1952 (ouro para o Canadá), 1956 (ouro para o Canadá), 1960 (ouro para os Estados Unidos), 1964 (ouro para a União Soviética) e, pela última vez, em 1968 (repetindo a União Soviética).

De qualquer forma o Campeonato Europeu, aquele que voltou com dois países em 1921, foi disputado até 1932, sendo a Suécia a campeã da última edição, em Berlim. O Campeonato Europeu passou a acontecer dentro do Campeonato Mundial, onde os europeus ganhavam suas medalhas dentro de um ranking próprio na tabela do torneio envolvendo apenas as equipes do continente. Por exemplo, em 1978 tivemos a União Soviética com o ouro, a Tchecoslováquia a prata e o Canadá com o bronze, enquanto a Suécia ficou em quarto. Dentro do Campeonato Europeu, a União Soviética manteve o ourou e a Tchecoslováquia a prata, enquanto a Suécia ficou com o bronze. Na contagem de pontos do Campeonato Europeu, se excluía, obviamente, os jogos com as equipes de fora do continente. Em 1991 a Suécia foi Campeã Mundial, o Canadá prata e a União Soviética bronze. Mas na contagem européia a União Soviética foi campeã, com prata para Suécia e bronze para a Finlândia, 5ª colocada no Mundial.

Esse formato só foi extinto em 1992.

Campeonato Mundial Independente
Aconteceu pela primeira vez em 1930, entre 30 de janeiro e 10 de fevereiro (Antes da FIFA de novo!), com sede intinerante entre Chamonix na França, Berlim na Alemanha e Viena na Áustria. Os canadenses saíram com o ouro, como é de praxe. O Mundial aconteceu de forma ininterrupta de 1930 a 1939, tendo nos anos de 1932 e 1936, como já explicado, sido disputado dentro dos Jogos Olímpicos. Nesse período aconteceram 10 edições e o Canadá venceu oito (sendo uma em Jogos Olímpicos). Um título ficou com a Grã Bretanha (também em Jogos Olímpicos) e um com os Estados Unidos, que chegou a golear a Tchecoslováquia por 6-0 em plena Praga e derrotar o Canadá em prorrogação por 2-1.

Naturalmente, tivemos um hiato pela II Guerra Mundial, e as competições foram de 1940 a 1946. Voltou em 1947 com o primeiro título da Tchecoslováquia, e no ano que vem o Mundial estaria novamente em disputa dentro dos Jogos Olímpicos.

O despertar da Besta
Foi em 1954 que o mundo mudou. Não por causa da Guerra Fria, não por causa da Copa do Mundo que a destruída Alemanha venceu, não por causa do suicídio de Getúlio Vargas, e muito menos devido ao nascimento da mãe deste colunista que vos escreve. O ano de 1954 viu a União Soviética disputar e ganhar seu primeiro Campeonato Mundial de Hóquei no Gelo. Essa máquina vermelha que fez o mundo de tacos e patins tremer por 34 anos entrou no torneio de forma implacável. Ouro em 1954, prata em 1955, ouro em 1956 (dentro dos Jogos Olímpicos), prata em 1957, 58 e 59, bronze em 1960 e em 61. Recusou-se a ir aos Estados Unidos jogar em 1962. E aí começou. Em 1963, ouro. Bi em 64, tri em 65, tetra em 66, penta em 67, hexa em 68, hepta em 69, octa em 70 e em 1971 chegou ao espantoso nono título consecutivo. A magistral seqüência foi quebrada com uma prata em 1972 diante da Tchecoslováquia. Enfilerou mais um tri-campeonato de 1973 a 75, ficou com a prata em 1976 e o bronze em 1977, e de 1978 a 1983 veio o pentacampeonato.

Depois de um bronze em 1985 os soviéticos levaram o ouro novamente em 1986, mais uma prata em 1987, bi-campeonato em 1989 e 1990 e, bem, a União Soviética já não existia mais. O último torneio disptutado pela bestafera vermelha foi em 1991, encerrando com o bronze, a cabeça erguida e um histórico intacto. Foram 34 Campeonatos jogados, 34 medalhas ganhas — 22 ouros, 7 pratas e 5 bronzes. Aproveitamento total de 100%, aproveitamento em ouro de 64,7%. Quem se aproxima dessa média é o Canadá, com 72,1% no total sendo 39,3% de ouros.

Os anos esquecidos
O Campeonato Mundial deixou de ser disputado em 1980, 1984 e 1988, anos em que não dividiu o torneio com os Jogos Olímpicos — prática que havia sido encerrada em 1972. Os Campeonatos Olímpicos valeram como Campeonatos Mundiais de 1932 a 1968, ininterruptamente. Em 1972, ano dos Jogos Olímpicos de Inverno de Sapporo no Japão e Jogos Olímpicos de Verão em Munique na Alemanha, quando as duas edições ainda ocorriam no mesmo ano, tivemos o Mundial seperado dos Jogos Olímpicos pela primeira vez, ocorrendo também a estréia independente do Torneio Olímpico de Hóquei no Gelo, por sinal, vencido pela União Soviética. Prática repetida em 1976, Jogos Olímpicos de Inverno de Innsbruck, onde a União Soviética também ficou com o ouro. Curioso é que nos dois anos, 1972 e 1976, os Soviéticos venceram o torneio Olímpico, mas perderam os dois Mundiais para a Tchecoslováquia, que foram sediados respectivamente em Praga e em Katowice (Polônia).

Então, em 1980, 84 e 88, como já foi explicado, tivemos apenas Jogos Olímpicos, sem Mundial. As competições voltaram a ser disputadas simultaneamente em 1992, Jogos Olímpicos de Inverno de Albertville e Campeonato Mundial de Praga e Bratislava na ainda viva Tchecoslováquia.

Amadorismo X Profissionalismo
O Campeonato Mundial de Hóquei no Gelo só era permitido a atletas amadores. Foi assim de 1920 a 1975. Apenas em 1976 os profissionais tiveram autorização oficial a jogar o torneio. A questão do amadorismo e a abertura ao profissionalismo, sem dúvida, se deu em grande parte por "culpa" do Canadá.

Em 1970 a IIHF permitiu que o Canadá escalasse atletas profissionais em seu time, desde que fossem membros de ligas menores, não da NHL. E o Canadá o fez. A decisão da IIH acabou gerando tantos protestos que a IIHF voltou atrás e anulou a permissão. O Canadá não gostou da atitude e abandonou o torneio, boicotando as cinco edições seguintes, retornando apenas em 1978 com a abertura definitiva a atletas profissionais, sancionada dois anos antes. Mesmo com atletas profissionais, formado em sua maioria por jogadores da NHL cujas equipes não avançaram à pós-temporada, o Canadá ainda estava à mercê do forte hóquei europeu e só voltou à ver a cor dourada em 1994, conforme já foi explicado.

Divisões inferiores
Com o interesse crescente das federações nacionais em jogar o Campeonato Mundial, em 1951 a IIHF criou a Chave B, uma primeira versão da Segunda Divisão. A Chave B não valia acesso à Chave A Primeira Divisão em suas primeiras edições, honraria que só conquistou alguns anos para frente. As vagas constumavam ser conquistadas pela Alemanha Oriental e pela Romênia, que no ano seguinte apanhavam na Chave A para retornar à Chave B. Em 1961 foi criada a Chave C e a Chave D surgiu em 1987. Esse formato de Chaves, com tal nomenclatura, permaneceu até o ano 2000, quando surgiram as Divisões. O Campeonato Mundial equivale à primeira divisão, e temos em seguida a Divisão I (Segunda Divisão), Divisão II (Terceira Divisão), Divisão III (Quarta Divisão), e um qualificatório para participar a Divisão III, que podemos considerar uma espécie de Quinta Divisão.

As Divisões I e II são divididas em chaves — Chave A e Chave B, e o vencedor de cada chave garante vaga na divisão de cima.

TheSlot.com.br já explicou que, os três representantes da Ásia no Campeonato Mundial, o Japão, a China e a Coréia do Sul não tinham rebaixamento, e jogavam um qualificatório para saber em que divisão cada um atuaria no ano, o chamado Qualificatório do Extremo Oriente. Essa medida foi tomada em 1998 para popularizar o hóquei no gelo e durou até 2005, ano em que as seleções asiáticas passaram a atuar normalmente dentro das divisões. Além da Ásia ter ganho um quarto participante: a Coréia do Norte. O panorama atual coloca o a Coréia do Sul na Chave A da Divisão I e seu rival, o Japão, na Chave B; a China na Chave B da Divisão II e a Coréia do Norte na Divisão III.

A Dúplice Coroa da Seleção Tríplice Coroada
A Seleção Sueca é conhecida por "Tríplice Coroa", por ter em seu símbolo as três coroas do Brasão de Armas de seu país. Em 2006 os Suecos conseguiram um feito inédito, que nem a poderosa União Soviética conseguiu em 1972 e 1976: vencer a "díplice coroa", ou seja, conquistar no mesmo ano o Campeonato Mundial e o ouro nos Jogos Olímpicos.

Até hoje o Campeonato Mundial e os Jogos Olímpicos só foram disputados no mesmo ano em sete ocasiões.

Os Mundiais do Amanhã
A edição 2008 acontecerá em Halifax e na Cidade do Quebec, no Canadá. Os torneios já têm organização definida até 2013. Ano que vem teremos disputa na Suíça, em Zurique e Berna; em 2010 será a vez de Mannheim e Colônia na Alemanha; Košice e Bratislava na Eslováquia receberão a versão 2011; em 2012 teremos os jogos na Finlândia, em Helsinque e com a segunda sede a ser decidida entre Tampere e Turku; e em 2013 Estocolmo e Malmö na Suécia servirão de anfitriãs.

Plagiando a FIFA, é a IIHF comemorando os cem anos de fundação pelo bem do jogo. Pelo menos aqui existe muito mais interessem em produzir competições sérias e organizadas.

Thiago Leal dedica este artigo a seus mentores J.J. Mec e Carlos Eduardo Costa.
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Herb Brooks, o segundo da direita para a esquerda, vence o Munidal da Chave B com os EUA em 1970.
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No mesmo ano, União Soviética e Tchecoslováquia travaram uma de suas muitas batalhas na Chave A.
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Cartaz do Campeonato Mundial de 1979. Na foto, Boris Mikhailov, da União Soviética, um dos melhores jogadores de todos os tempos.
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Thomas Eriksson e o lendário goleiro Pelle Lindbergh ajudam a Suécia a parar o Canadá no Mundial de 1979.
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Página publicada em 30 de janeiro de 2008.