Por: Alessander Laurentino

Há mais de 15 anos eu acompanho a NHL e nunca, nem por um instante sequer, passou pela minha cabeça a ideia de me decepcionar de forma tão dura e tão amarga com a liga do esporte que eu mais amo no planeta. Pelo menos até a terça-feira passada. A partir daquela fatídica noite de terça-feira, não posso mais dizer que nada mudou, que tudo continua como antes. Não, caro leitor, não posso ser mentiroso a esse ponto e negar o óbvio.

A causa do meu desgosto começou quando faltavam cerca de 15 segundos para o final do segundo período da partida entre Boston Bruins e Montreal Canadiens no Bell Centre em Montreal. O fato: o defensor e capitão dos Bruins empurrou o atacante dos Habs, Max Pacioretty, em direção à borda do rinque e o desfecho do lance foi algo digno de um filme do tipo "Faces da morte". Pacioretty foi arremessado para a divisória de vidro que separa os locais onde ficam os jogadores das duas equipes, e acabou atingindo essa divisória com a cabeça em alta velocidade. A sequência do lance é chocante e de tirar o fôlego, no pior dos sentidos. Pacioretty sofre um traumatismo crânio-encefálico e cai feito um pedaço de carne jogado no gelo. Imóvel. Silêncio na arena. Um silêncio mortal (sem trocadilhos) assola o Centre Bell e a reação vai do espanto ao desespero, passando por todo tipo de sensação horrível que um ser humano pode experimentar em poucos minutos. Imagine você achar que está presenciando ao vivo a morte de um jogador professional provocada por um outro jogador.

Não, Pacioretty felizmente não morreu. Também não ficou paralisado pelo resto da vida, mas sofreu uma grave concussão cerebral e fraturou a quarta vertebra cervical, o que o tira do resto da temporada e coloca em risco a sua continuação como jogador professional de hóquei no gelo.

Eu estava vendo a partida ao vivo e a minha primeira reação foi: "Meu Deus, eu espero que ele não esteja morto". Em seguida, ao ver que ele não tinha morrido, eu pensei: "Meu Deus, tomara que esse garoto não fique paralisado pelo resto da vida". Pois é, acho que assim eu resumo bem como eu e milhões de pessoas se sentiram ao ver o lance.

A partir daquele momento meu interesse pelo resto da partida desapareceu. Tudo o que eu conseguia pensar e queria saber era o estado de saúde do Pacioretty. Se ele realmente estava bem, se tinha quebrado alguma coisa, se teria sequelas neurológicas (principalmente motoras), seu prognóstico etc. Foi como se a partida tivesse terminado ali. O resto do jogo passou como uma mera formalidade para a liga e para as estatísticas.

Após a partida, era certo que Zdeno Chara seria punido, afinal de contas, como alguém poderia escapar impune depois de quase cometer um assassinato durante uma partida de hóquei? Confesso que minha primeira impressão foi de que ele tinha premeditado a ação. Depois, revendo o lance, não tive mais tanta certeza assim. Mas isso não o absolve de culpa, isso quer dizer apenas que as aparências apontam para o fato de que Chara não foi maldoso no lance, mas por outro lado foi de uma imprudência e falta de respeito sem tamanho para com um colega de trabalho, de profissão e para com um ser humano, sem falar na falta de consideração e desrespeito em relação às pessoas que estavam vendo a partida.

Não é possível que um jogador tão experiente não saiba em que região do rinque ele se encontra e não tenha a noção de que um sujeito de mais de dois metros e mais de cem quilos ao dar um tranco em um adversário bem menor e mais leve, e em alta velocidade, na região em que ficam os bancos e a maldita divisória, não esteja colocando o adversário em uma situação de alto risco potencial de lesões. Não, leitor, ele deveria saber o que estava fazendo e onde estava. Sim, porque a outra opção é que ele seria um gigante burro e sem noção, o que também o tornaria inapto a participar de um esporte físico e de contato a altas velocidades.

No dia seguinte foi que caiu a bomba e a inacreditável decisão da NHL de que o lance não merecia nenhuma outra medida disciplinar por parte da liga. A penalidade marcada como interferência e assinalada como uma penalidade maior de cinco minutos, mais uma penalidade por conduta antiesportiva e a expulsão pelo resto da partida foram julgadas como mais do que satisfatórias pela direção da NHL. Como assim os árbitros da partida consideraram o fato de grande gravidade mas a liga com direito a diversos replays de múltiplos ângulos acham que não passou de um acidente? Inacreditável e surreal.

Mais comprometedor ainda o fato da liga não ter se dado o trabalho de escutar mais ninguém além de Zdeno Chara, o responsável único e direto por toda a confusão e escuridão em que a NHL se meteu durante essa semana. Definitivamente uma das piores semanas na história quase centenária da NHL.

Simplesmente não tomar attitude alguma foi uma das piores decisões que a NHL poderia ter tomado, visto que passa para o mundo inteiro a noção de que a liga simplesmente não dá a menor importância para o potencial de lesões ao qual os seus jogadores estão sujeitos. Pior ainda, mostra que a liga não tem governo, não tem moral, não tem caráter e não tem disciplina.

A situação não para de piorar e de ficar mais triste quando você descobre que o gerente da liga teve seu contrato renovado recentemente e de forma nada transparente, sendo que o sujeito encarregado de renovar seu contrato é exatamente proprietário do Boston Bruins, o outro lado envolvido na celeuma dessa semana.

Tudo bem, Pacioretty teve azar de receber um empurrão e se lesionar de forma grave em situação de jogo e que é difícil definir a presença de intenção por parte de Chara, que aliás nega que tenha tido a intenção de machucar o jogador dos Habs. Mas diversas pessoas com quem conversei aqui em Montreal e que são habituadas à prática de hóquei no gelo, inclusive um jogador da QMJHL, foram unânimes ao dizer que todo mundo sabe muito bem em que lugar do gelo você está e que a velocidade da ação não serve de desculpa para dizer "ah foi rápido e eu não sabia exatamente onde estava". Claro que sabia!

A incapacidade da NHL em proteger seus jogadores é o que causou a revolta espalhada em diversos torcedores e admiradores do esporte. Se você não pune de maneira exemplar, você abre precedentes perigosos e basicamente manda a mensagem que "se você fizer de forma a parecer que não teve intenção, não tem punição".

Um capitão de um time tem que liderar com caráter, servir de exemplo e de modelo e, acima de tudo, ser um sujeito de integridade inquestionável. Quando o seu capitão faz o que Zdeno Chara fez, que tipo de mensagem você acha que está sendo passada adiante? E o exemplo?

As repercussões não param nas opiniões individuais de diversos torcedores, repórteres e pessoas ligadas ao esporte. No final da semana, alguns patrocinadores importantes da liga fizeram declarações públicas de sua insatisfação em relação à maneira como a liga tem lidado com a questão da segurança dos seus jogadores dentro do gelo e a ausência de critérios rigorosos que possibilitem a repressão à violência desnecessária e às atitudes no mínimo sem noção e irresponsáveis como a de Chara. Primeiro foi a vez da Air Canada se pronunciar que não estava à vontade em associar a sua marca com uma liga onde a violência aumenta e as punições (ou sua ausência) são no mínimo questionáveis. Depois foi a vez do proprietário do Montreal Canadiens divulgar uma carta aberta ao público nos jornais de Montreal mostrando a sua insatisfação sobre o modelo como a liga tem sido gerida. Como ele também é proprietário da cervejaria Molson, outro importante parceiro da NHL no Canadá, a empresa também se posicionou de maneira crítica à postura da NHL. Para completar, no final da sexta-feira, foi a vez da empresa ferroviária Via Rail também se pronunciar sobre a sua insatisfação em relação à apatia da liga e a maneira como gerenciou o caso Chara x Pacioretty.

Dificilmente alguém vai retirar um patrocinio de forma unilateral, mas o precedente foi criado e se de repente ao invés de apenas uma voz, forem cinco, seis ou dez? Bettman pode ter respondido de maneira extremamente mal educada à manifestação da Air Canada, mas será que ele tem cacife para fazer o mesmo com cinco grandes parceiros da liga?

Enfim, quando você vê acontecer uma sequência de enventos como os dessa semana na liga que você acompanha de perto, que torce, se envolve e pela qual é apaixonado, o resultado é uma frustração enorme, uma tristeza sem tamanho e a aparição de dúvidas pela primeira vez se realmente é algo que merece tanto o seu tempo e a sua dedicação como torcedor e colunista.

De repente, você começa a se perguntar: afinal, o que sera necessário para que a direção da liga acorde e passe a dar a importância necessária para a disciplina e para as agressões crescentes dentro do gelo? Será preciso que alguém morra ao vivo para que o sr. Bettman e seus lacaios se mexam? Espero sinceramente que não, pelo bem do esporte, pelo bem da NHL.

Alessander Laurentino sofreu um duro golpe com a inércia e a irresponsabilidade da NHL nessa semana.

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Página publicada em 13 de março de 2011.