Por Michael Farber

A seleção olímpica russa é uma charada enrolada dentro de um enigma selado com fita isolante.

A máquina de jogar hóquei pode ainda ser grande e vermelha — rápida e quixotesca, a Rússia tem goleadores talentosos, como Alexander Ovechkin e Ilya Kovalchuk —, mas o escapamento está solto, o pára-choques está amassado e o óleo está vazando. Junto de Canadá e República Tcheca, este é um time a se observar atentamente, e não necessariamente de maneira positiva.

Das duas, uma: ou os russos são um campeão prestes a ser coroado ou um acidente prestes a acontecer. Como diz o zagueiro Sergei Gonchar, que já foi a três Olimpíadas, "em um campeonato tão curto, tudo depende do espírito da equipe, de quanto o pessoal está disposto a se sacrificar."

Boa sorte. Por mais de uma década, a Rússia tem sido 20 jogadores, 20 Ladas.

Para restaurar a glória esmaecida de um país que ganhou a medalha de ouro pela última vez em 1992 (como Comunidade dos Estados Indepen-dentes), para criar altruísmo e camaradagem dentro desse circo olímpico, a Federação Russa de Hóquei no Gelo naturalmente procurou o desligado e emocionalmente neutro (apesar de espetacular) ex-joga-dor em sua recente história, Pavel Bure, como gerente geral.

"[A federação está] tentando achar outro Gretzky na Rússia", diz o ministro dos esportes Slava Fetisov, o defensor membro do Hall da Fama. "Pavel tem um grande nome no hóquei, e eu espero que isso compense sua [falta de] experiência em comandar as coisas." Clara-mente, o modelo para a seleção do caos é a seleção canadense, que nomeou Wayne Gretzky seu diretor executivo, apesar de o "Great One" não ter nenhuma experiência anterior de gerenciamento. A resposta do Canadá foi o fim de 50 anos de jejum de medalha de ouro nas Olimpíadas de 2002, com a Copa do Mundo de 2004 como bônus para reforçar seu status como nação número 1 indicutível do hóquei.

A semelhança entre os GGs é que tanto Gretzky como Bure são atuais, plugados na cultura da NHL. A diferença é que um tem uma maravi-lhosa infraestrutura disponível na Federação Canadense, enquanto o outro tem de se contentar com uma federação que está a duas árias de ser uma ópera cômica. Além disso, Gretzky tem um dos mais bri-lhantes cérebros do hóquei. Bure... bem, ele era o "Foguete Russo", não o "Cientista de Foguetes Russo".

Na entrevista coletiva em que foi apresentado em Moscou, em novembro, Bure, de 34 anos, disse: "Eu posso prometer uma coisa: de agora em diante vocês não vão ver tanta bagunça na seleção como havia antes." Ele até que está cumprindo sua promessa, a não ser que você considere que: 1) o técnico Vladimir Krikunov tem chamado Bure de "marionete" até que Bure soltou um "Quem manda aqui sou eu"; 2) A negligência de Bure em contatar alguns jogadores — o veterano Alexei Kovalev soube de sua convocação ao surfar na internet; 3) a fria relação entre Fetisov e o presidente da federação, Alexander Steblin; e 4) O comportamente de Steblin em 8 de janeiro, na Copa dos Cam-peões da Europa em São Petersburgo, quando, depois de ser barrado na cerimônia da vitória, ele supostamente xingou o presidente da Federação Internacional de Hóquei no Gelo, René Fasel, fez sangrar o rosto do seu próprio intérprete com um soco e jogou uma bandeja de laranjas contra um dos organizadores do torneio. O jornal Sovetsky Sport laudou o incidente como o hat trick de Steblin.

A escolha lógica para GG da Rússia era Igor Larionov. Steblin telefonou para Larionov no início de março de 2004, para perguntar a ele se ele estava interessado em comandar o time da Copa do Mundo. Larionov — que ganhou duas Copas Stanley, duas medalhas de ouro nas Olimpíadas de Inverno e quatro campeonatos mundiais em uma carreira que passou por quatro décadas e dois sistemas políticos — disse que poderia estar interessado se oito condições fossem atendidas, incluin-do a contratação de um estrangeiro, Larry Robinson, então técnico do New Jersey Devils. Dado o complexo de superioridade do hóquei russo, foi uma exigência ousada.

Quando Steblin hesitou, Larionov pulou fora. "Eu falei [para a federa-ção] para nunca mais me pedirem nada", conta Larionov. De acordo com uma fonte na federação russa, algumas semanas após a recusa de Larionov, durante a festa de 33 anos de Bure em Moscou, Steblin pro-curou o jogador com a mesma proposta. Bure, que tinha um joelho bem comprometido, disse que seria uma honra comandar a seleção, mas só depois que ele tivesse a certeza de que não poderia mais jogar. No último dia 1.º de novembro, apenas 14 semanas antes da estréia olímpica da Rússia, contra a Eslováquia, ele se aposentou oficialmente e aceitou o cargo.

É claro que, graças à guinada rumo ao individualismo no hóquei russo, Bure pode ser o homem certo afinal de contas. As revoluções na socie-dade russa nos últimos 15 anos foram imitadas no hóquei local. O time que disputou o famoso clássico contra o Canadá em 1972 e a seleção supostamente imbatível que foi vencida pelos EUA nas Olimpíadas de 1980 eram, em teoria, compostas por robôs, meras peças em uma máquina comandada pelo Estado. Realmente, a coesão dos times que a União Soviética mandava para o gelo, a disposição de criar e esperar por aquele chute, ao invés de um chute, era mais surpreendente até que a sublime técnica daquelas equipes.

Com o colapso da União Soviética, o hóquei "CCCP" também passou por grandes mudanças. A "Mãe Rússia" tornou-se uma ama-de-leite para free-lancers e independentes como Kovalchuk e Ovechkin. "Seu famoso estilo de jogo coletivo não é mais tão proeminente como costumava ser", compara o ex-técnico da seleção canadense Dave King, que hoje é técnico do Mettalurg Magnitogorsk, da Superliga russa. "Mesmo as jogadas intuitivas que você vê nos clubes pode faltar [na seleção]."

A Rússia também sente falta do goleiro Nikolai Khabibulin (joelho); dos atacantes Sergei Fedorov (virilha), Alex Zhamnov (tornozelo) e Alexander Mogilny (pediu dispensa por consideração); e do defensor Sergei Zubov (que não joga internacionalmente desde 1996). "As pes-soas que querem fazer parte deste time", elogiou Bure no mês passa-do, "são verdadeiros patriotas". Krikunov, claro, prefere artilheiros a porta-estandartes. O técnico do Dínamo de Moscou é da velha escola russa, e raramente tenta algo remotamente tão progressivo como comparação de linhas — apesar de que ele carrega nas vantagens nu-méricas, dando a maior parte do tempo no gelo para sua melhor unidade.

Não que Kovalev, capitão do time que conquistou a medalha de bronze no campeonato mundial de 2005, se importe. "Não estou preocupado com técnicos ou com o GG", afirma. "Isso não vai me ajudar a ajogar hóquei." Ele está, entretanto, preocupado com seus colegas de time e com a federação. "Um motivo por que estamos mal como seleção é que os caras vê aqui e tentam se exibir", reclama ele. "Jogam o jogo deles, fazem suas próprias coisas, mas nunca jogam realmente como um time. Outro problema é que o pessoal se preocupa demais com o que a federação faz ou não por eles. Eles pagaram as passagens [de avião]? Eles fizeram isso ou aquilo? Temos que parar de nos preocupar com isso... Mas quando você tem pessoas se voltando contra as outras na federação, isso revela muita coisa. Se cada um está puxando para uma direção, o que mais você pode esperar?"

Apesar das trapalhadas da federação, um elenco fraco e um chefe iniciante, a Rússia está verdadeiramente confiante quanto às suas chances olímpicas. Quando perguntado sobre que país deveria ser considerado favorito, Kovalev sorriu e disse: "Nós."


Michael Farber é jornalista da revista Sports Illustrated. O artigo foi traduzido por Alexandre Giesbrecht.
ESPERANÇAS Petr Prucha, da República Tcheca e dos Rangers, Miroslav Satan, da Eslováquia e dos Islanders, Alexei Yashin, da Rússia e dos Islanders, Dany Heatley, do Canadá e dos Senators, e, na frente, Rick DiPietro, dos EUA e dos Islanders (Michael O'Neill/SI)
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Página publicada em 8 de fevereiro de 2006.