Por: Thiago Leal

Nossa principal referência no Brasil é o futebol, obviamente. E as categorias de futebol para crianças são inúmeras. Fraldinha, mirim, infantil, infanto-juvenil... da mesma forma acontece com o hóquei nos Estados Unidos da América e no Canadá. As crianças, para disputar campeonatos, dividem-se em várias modalidades, afim de disputar apenas com garotos de sua idade, para que haja, claro, maiores equilíbrio e segurança. Os canadenses têm a categoria mite (micróbio) para crianças de 3 a 4 anos; tyke (menininho) é para 5 e 6 anos; os de 7 a 8 jogam na novice (novato); para crianças de 9 a 10, atom (átomo); peewee (pequenininho) é a categoria para crianças entre 11 e 12 anos de idade; aos 13 e 14 elas jogam bantam (frangote); e dos 15 aos 16, chegam ao midget (anão). Só a partir daí chega-se ao junior, ou juvenile, equivalente a juniores ou juvenil no Brasil. A badalação costuma ser grande quando um grande talento chega ao juvenil. E no caso dos jovens fenômenos, essa badalação existe mesmo nas categorias menores — o que não é exclusividade do hóquei no gelo. O terceira base do Chicago White Sox Dayán Viciedo, jovem cubano de 20 anos de idade, profissionalizou-se aos 15 anos de idade na Série Nacional de Cuba, e desde antes disso já chamava a atenção dos olheiros da Major League Baseball, que sonhavam em financiar sua fuga. No Brasil, garotos como Neymar, Robinho e Ronaldinho viravam notícias desde os 13 anos de idade. E hoje, com as facilidades do YouTube, é possível que crianças como Jean Carlos Chera e Caio Werneck ganhem status (e salários) de estrelas, mesmo com 10, 11 anos de idade.

Tudo isso acima foi realidade para Sidney Patrick Crosby, que aos 14 anos de idade jogava midget, uma categoria acima da sua. Certamente se Crosby fosse garoto hoje, em 2009, a badalação seria muito maior, e seus vídeos estariam expostos aos montes em sítios como YouTube, MySpace e em comunidades do FaceBook. Crosby, assim como Wayne Gretzky, Mario Lemieux, Eric Lindros, Vincent Lecavalier e a futura estrela John Tavares cresceu com o peso de ser o número 1 mesmo antes de ser um homem.

"O Menino", desde menino
O fenômeno precoce Sidney "Sid The Kid" Crosby foi revelado na província de Nova Escócia no Canadá. Aos sete anos de idade, teve o prazer de dar a primeira entrevista de sua vida a um jornal local; aos 13 entrou na justiça para tentar jogar campeonatos da categoria midget; aos 14 entrou na modalidade então voltada para meninos dois anos mais velhos; levou o Dartmouth Subways ao vice-campeonato da Air Canada Cup, uma das principais competições infantis, sendo eleito o jogador mais valioso do torneio; e venceu o campeonato nacional dos Estados Unidos pelo Shattuck-Saint Mary's Boarding School Sabres. Em 2003, foi selecionado como escolha número um no recrutamento da QMJHL — mesmo ano em que se tornou o quinto jogador de 16 anos de idade na história a jogar um Campeonato Mundial Sub20 pela Seleção Canadense — depois de Wayne Gretzky, Eric Lindros, Jason Spezza e Jay Bouwmeester.

Ao mesmo tempo que era um garoto, torcedor do Montreal Canadiens e fã de Steve Yzerman, Crosby já tinha que lidar com as pressões de ser uma promessa do esporte. Depois de uma temporada sensacional em 2005, ganhando diversos prêmios na QMJHL, jogando e perdendo a Copa Memorial e conquistando a medalha de ouro no Campeonato Mundial Juvenil pela Seleção Canadense, veio então o tal recrutamento da NHL. Parafraseando os Engenheiros do Hawaii, a escolha de Crosby foi para "um país sedento um momento de embriaguez". O fato do jovem calouro ser um talento precoce espetacular se somou à apreensão que a liga vivia por ter passado uma temporada inteira de locaute. Junte isso com o fato de que Crosby acabou sendo recrutado por uma franquia que há muito sofria com a queda de produção do seu grande ídolo, motivada por séries de problemas físicos, e via seus dias de glória cada vez mais distantes. A chegada de Crosby aos Penguins teve para o novo torcedor o mesmo efeito que a de Lemieux em 1984 teve para aquela época. Isso tudo impulsiona uma forte onda mercadológica, motivada pelas coincidências e a mística de uma antiga lenda do hóquei. E Crosby já nasceu para a NHL com o status de lenda. Apesar do enorme talento de Crosby ser determinante para seu sucesso, o momento que ele aconteceu acabou fazendo mais diferença. Ele era o bom e velho "cara certo no lugar certo".

Como se não bastasse, Crosby ainda tinha mais um ponto positivo a seu favor: sua personalidade. Crosby é o típico menino que a sociedade americana quer pegar como exemplo para as gerações menores. Um jovem trabalhador — tecnicamente ele começou a trabalhar aos 17 anos de idade, certo? —, um talento precoce (a cultura americana é obcecada pelo conceito de menino prodígio) e, acima de tudo, um "bom garoto". Diferentemente de caras como Eric Lindros, Alexandre Daigle ou Vincent Lecavalier, Crosby é um rapaz publicamente humilde que evita polêmicas, esquivando-se mesmo das discussões mais cabeludas, como quem é melhor, ele ou Alexander Ovechkin, ou das declarações de Alexander Semin.

Sua entrada na NHL também coincidiu com a despedida de Mario Lemieux, "o Crosby de 21 anos atrás". Pelo pouco tempo que ambos jogaram juntos, muitas imagens de Lemieux ao lado de Crosby foram feitas, mostrando Le Magnifique como uma espécie de tutor de The Kid. E isso reforça mais um mito extremamente valorizado pela cultura americana, que é a do velho mestre e o jovem pupilo. Isso você encontra em toda parte. No Robin, aluno do Batman; no Luke Skywalker treinado pelos velhos mestres Obi-Wan Kenobi e Yoda em Star Wars; e no Daniel "San" LaRusso e Sr. Miyagi de Karate Kid. Porque essa doutrina passada de geração em geração é objeto valorizado na cultura americana — o sábio velho mestre ensinando sua técnica ao impetuoso jovem discípulo.

E por que os Anti-Crosby?
Enfim... aconteceram a favor de Crosby uma série de coincidências que culminaram com a mitificação precoce de sua figura, tão preconce quanto seu talento. E hoje o mundo passa por uma febre de desvalorização da cultura contemporânea. É fruto do modus operandi da Geração X, crescida na ressaca da reabertura democrática do mundo após anos de Guerra Fria. Isso vai longe, mas tentarei explicar brevemente. Ao longo dos anos 60, 70 e 80 o mundo vivia efeitos do pós-guerra e da bipolarização político-econômica. Enquanto Estados Unidos e União Soviética alimentavam um latente clima de paz armada a Europa se mantinha na linha de fogo; e a América do Sul era sufocada por ditaduras financiadas por um governo estrangeiro que temia o crescimento de partidos socialistas em países pobres como os sul-americanos. O escapismo do mundo nesse período era a criação de heróis. E cada um moldou os seus. Os brasileiros tinham Pelé, Garrincha, Tostão, Rivellino e, mais para frente, Zico, para esquecer e aliviar a dor causada pela ditadura; os argentinos precisaram inventar Mário Kempes e ganhar uma Copa do Mundo para abrandar o sofrimento do seu povo; os americanos tentavam mostrar a superioridade capitalista criando atletas como Mark Spitz e Carl Lewis; e a União Soviética devolvia na mesma moeda, com o time de hóquei no gelo mais poderoso do mundo. O Canadá, país neutro que era e é, via suas estrelas profissionais se agigantarem. Passaram Gordon Howe, Guy LaFleur, Wayne Gretzky e se chegou a Mario Lemieux. Enquanto isso o cinema via explodir o gênio de diretores como Federico Fellini, Igmar Bergman, Steven Spielberg, Martin Scorcese, Francis Ford Coppola e Woody Allen. E a música? Bem... fomos de Beatles a Nirvana, passando por Black Sabbath, Iron Maiden, Metallica, Led Zeppenlin, Pink Floyd, Eagles, Guns N' Roses, Sonic Youth, Ramones, Sex Pistols, The Clash, The Smiths, U2, Kiss... aliás, Nirvana é considerado o grande símbolo da Geração X, por ser justamente responsável pelo seu surgimento. E claro que aqui no Brasil tivemos nossos expoentes com Chico Buarque, Caetano Veloso, Novos Baianos, Mutantes, Legião Urbana...

Quando esse sufoco acabou, a figura do herói tornou-se desnecessária. Os Jogos Olímpicos foram abertos a profissionais e a geração atual, a minha, a sua... não precisou mais ter ídolos míticos. Eram/são outros tempos. Uma economia mais próspera surgida no começo dos anos 90 que resistiu a até pouco mais de um ano atrás, motivada pela política neo-liberal e por uma sociedade yuppie (palavra criada para designar "jovens profissionais urbanos"), garantiu à classe média de nossa geração uma vida mais tranquila e deveras mais fácil. Sem a capacidade de se identificar ou de criar heróis contemporâneos, virou uma tendência de nossa geração supervalorizar o passado e virar as costas para o presente. É comum que a geração atual — e eu me incluo nesse padrão — afirme que a música, o cinema ou o esporte de hoje em dia não são bons. E quando surge qualquer expoente da presente geração, é mais fácil que ele seja extremamente criticado e não receba tanto reconhecimento quanto merece.

Crosby acaba sofrendo as consequências desse tipo de pensamento. Da mesma forma que bons grupos musicais da geração atual, como Yeah Yeah Yeahs ou Kings of Leon ou bons diretores de uma nova geração do cinema, por exemplo, Jason Reitman e Christopher Nolan acabam sofrendo comparações com antigos mestres da sétima arte, tudo em nome do puro saudosismo que às vezes pode nem ser tão supervalorizado assim, mas não implica que, para exaltá-lo seja necessário também desvalorizar o presente.

É possível você gostar de The Doors e de Kings of Leon; de Francis Ford Coppola e de Christopher Nolan, perfeitamente. Da mesma forma que não é necessário ser torcedor dos Penguins para admirar Mario Lemieux e Sidney Crosby ao mesmo tempo.

Todo o marketing já citado em cima da figura de Crosby ajuda a alimentar o ódio de seus desafetos. Na cabeça de muita gente, Crosby não merece todo esse reconhecimento da mídia. E esse tipo de comportamento tem nomes: inveja ou ciúme. Porque não vejo nada de errado que Crosby seja tomado como objeto de marketing da NHL. Obviamente a liga, como toda empresa ou organização que vive de vender seu negócio, precisa de figuras que façam as propagandas a seu favor. Crosby não é o único. Tanto que até agora Sid não apareceu na capa de nenhum jogo da série NHL da EA Sports. Até agora, desde que Crosby estreou na liga, já foram capas Eric Staal, Alexander Ovechkin e Dion Phaneuf. "Ah, mas agora o Sid vai ser!". Só se for na edição 2011, porque a 2010 terá Patrick Kane. Na série NHL da 2K Sports até agora, nada de Crosby também. Tivemos Marty Turco, Joe Thornton, Jason Spezza, Rick Nash e o próximo será... Ovechkin!

Às vezes até me parece que toda essa onda de ódio contra o Crosby é maior no Brasil que na América do Norte. E olha que fala aqui alguém que, pessoalmente, não gosta de Crosby. Mas não por achar que ele é um ruim jogador. Muito pelo contrário. E provarei no parágrafo a seguir. Mas sim porque não gosto de sua personalidade de bom-moço. Prefiro caras mais linguarudos e cabeça-quente, como Sean Avery ou Ryan Getzlaf. E nem por isso me acho no direito de ficar desmerecendo aquele que pode vir a ser o grande nome de hóquei de minha geração. E da minha geração eu valorizo tudo que é bom, assim como nas gerações passadas.

Capitão Kid
Aos 18 anos de idade, ainda calouro, Sidney Crosby foi nomeado capitão alternativo (ou assistente) do Pittsburgh Penguins, gerando críticas de Don Cherry e até mesmo de TheSlot.com.br na ocasião, sendo a atitude considerada precipitada por parte da direção do Pittsburgh.

Até concordo que o calouro Crosby não tinha condições de ter aquele A costurado no ombro, e também que ele não devia ter capitaneado os Penguins nessa campanha vencedora — a meu ver, Sergei Gonchar, Brooks Orpik ou Rob Scuderi tinham muito mais condições de lidar com o cargo. E acho mais absurdo ainda que Evgeni Malkin seja capitão alternativo, por melhor que o russo seja. Mas essa política de investir na imagem dos jovens atletas certamente faz parte das estratégias da franquia em renovar a sua história. Crosby e Malkin têm papel fundamental nesse processo, por isso recebem as honras. De qualquer forma, doa em quem doer, agora como capitão mais jovem a levantar uma Copa Stanley, Crosby se consagra e coloca seu nome ao lado do seu ídolo de infância, Steven Yzerman, que fora o capitão mais jovem da história quando colocou o C no ombro aos 21 anos de idade, e também o capitão com maior longevidade na liga.

Obviamente Crosby não é só imagem. Aos poucos, à medida que, concordo, ele torna-se um atleta chorão, caindo facilmente e reclamando demais, Sid também se desenvolve como jogador — e que jogador! O "Menino" é um típico dangler que tem controle total sobre o disco, não apenas com a lâmina de seu taco, mas até mesmo com os pés, quando necessário, ou com as mãos, sempre que precisa amortecê-lo. OK, exagerei. Mas de fato, vejo Crosby como um dos melhores, se não o melhor, jogador na NHL atualmente. Estaria para mim dividindo o topo com seu companheiro Evgeni Malkin, com Alexander Ovechkin, com Henrik Zetterberg e Ilya Kovalchuk.

Talvez seja difícil reconhecer o talento de Crosby quando se está envolto no ódio que cerca o Menino. Só que estamos falando sobre um cara que tem tanta facilidade em driblar quanto grandes nomes do passado. Vou compará-lo a Pavel Datsyuk, porque se eu o comparasse com quem gostaria, certamente seria insultado.

E agora que ganhou a Copa e tirou um peso das costas, a tendência é que Crosby se desenvolva ainda mais.

Sua imagem levantando a Copa, sua empolgação ao erguer o troféu realmente foi emocionante. Paceria uma criança que acabara de ganhar o jogo de video game pelo qual esperou o ano inteiro. Ali se via alguém que sempre gostou de hóquei, que sempre sonhou com aquele momento, finalmente atingindo a consagração máxima.

Ainda tentam manchar sua imagem questionando por que ele não foi cumprimentar Nicklas Lidström, deixando o elegante capitão do Detroit esperando até cansar. Concordo que não foi muito educado. Mas uma criança que acaba de levantar seu maior sonho certamente não pensava mais nada que não fosse "Putz! Consegui! Consegui! Finalmente! Cara! Não acredito!"

Não acho que seja justo culpá-lo.

Mas a vida é feita de pressões e agora Sidney Crosby vai ter que experimentar e lidar com uma nova: a de campeão.

Thiago Leal recentemente resolveu aderir à onda dos twitters.
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Página publicada em 16 de junho de 2009.