Por: Alexandre Giesbrecht

De repente pareceu que ventos tropicais assolaram a América do Norte, curiosamente na mesma época em que uma onda de frio passou pelo mesmo continente, levando neve até à ensolarada Flórida. Mas esses tais ventos tropicais nada tinham a ver com o clima, muito menos com o apregoado aquecimento global. Eles traziam, sem dúvida, a desorganização que nós, brasileiros, nos acostumamos a ver nos eventos esportivos locais, do onipresente futebol a esportes amadores como a bola ao cesto.

Nunca antes na história da liga viu-se tantos acontecimentos que pareciam inspirados pelos piores momentos dos piores dirigentes tupiniquins em tão pouco tempo. Felizmente, a divulgação do hóquei aqui no Brasil é tão parca que os incidentes abaixo relatados passarão despercebidos, senão poderiam servir de inspiração na eterna busca da imperfeição que tantos dirigentes por aqui parecem buscar. (Parêntese: a cobertura nacional da NHL não só é parca, como, quando existe, é porca. O Uol, por exemplo, publicou no final do ano um "top 5" com as "principais pancadarias do hóquei na década", sem dúvida chupado de uma lista similar que o Puck Daddy publicara onze dias antes, mais completa e feita por gente que realmente entende do assunto. Ainda que se desconsidere o fato de o hóquei no gelo só ter algum destaque na imprensa brasileira quando há brigas, o texto traz pérolas como esta frase, com grifo meu: "Os juízes não impedem a briga, mas na maioria das vezes ficam observando para decretar quem é o vencedor quando não há nocaute.")

Tudo começou com um episódio que na verdade é inédito aqui no Brasil, embora não seja necessário muito esforço para imaginá-lo ocorrendo por aqui. No dia 18 de novembro, logo após um treino em um rinque em um subúrbio de Ottawa para o jogo do dia seguinte contra os Senators, boa parte do equipamento do Wild foi consumido por incêndio no caminhão que faria o transporte do material. Pouca coisa se salvou, e entre o que foi destruído estavam camisas, tacos e equipamentos de proteção. Os equipamentos de nove jogadores ficaram intactos, mas dos de outros doze quase nada pôde ser aproveitado. Michael Russo, repórter do jornal Star Tribune, fez um inventário do que cada jogador perdeu.

Os jogadores tiveram de se virar com uma mistura de equipamentos novos e antigos, e a diretoria apressou-se para tentar conseguir trazer todo o material necessário de Minneapolis a tempo. O goleiro Niklas Backström, assim como seu reserva Josh Harding, tiveram de atuar contra os Senators com proteções novas em folha, algo que dificulta bastante o trabalho de um arqueiro. Harding, que perdeu sua máscara no incêndio, aproveitou a pintura da máscara nova para lembrar do incidente e até homenagear o departamento de bombeiros de Ottawa, como mostram as fotos que Russo divulgou, cerca de três semanas após o ocorrido.

Se tal incêndio é algo inédito para os dirigentes brasileiros — que eles não estejam fazendo anotações a respeito —, o que aconteceu em New Jersey em 10 de janeiro não é. Tal qual um estádio do interior quando o time da casa está perdendo, parte do Prudential Center ficou às escuras 44 segundos após o gol de Steven Stamkos dar uma vantagem de 3-0 ao Lightning sobre os Devils. A demora para resolver o problema praticamente descarta um ato intencional, tanto é que a partida foi suspensa após duas horas e retomada dois dias depois (com cada time jogando uma partida fora de casa nesse meio-tempo: o Lightning na vizinha Filadélfia e os Devils em Montreal). Ao final, com cerca de um quinto do público inicial — nossa capa desta semana dá uma ideia de como ficou o estádio —, o Tampa Bay saiu vencedor por 4-2.

Apesar da provável inocência do time do gerente geral Lou Lamoriello, foi inevitável comparar a situação a tantas outras que já ocorreram nos gramados do Brasil, da mesma maneira que o que aconteceu em Vancouver no último fim de semana também lembrou tantas outras cenas já vistas por aqui. No jogo contra os Flames no GM Place, um idiota resolveu usar uma daquelas canetas laser para tentar irritar Miikka Kiprusoff, goleiro do time visitante. O episódio não só enfureceu o pessoal de Calgary como detonou uma série de eventos que trouxe ainda mais brilho à nossa comparação com a desorganização do nosso futebol.

"É ridículo", protestou o técnico dos Flames, Brent Sutter. "O negócio seguiu a noite inteira. Dava para vermos do banco, refletindo na máscara dele. Era algo para a segurança e os árbitros lidarem. Os árbitros, claro, não tinham muito o que fazer a respeito. É difícil acreditar que aquilo pôde seguir pelos sessenta minutos de um jogo de hóquei sem achar o culpado." Com mais um jogo no GM Place na segunda-feira, os Predators, visitantes da vez, resolveram "precaver-se" contra uma reedição do episódio que acometera os Flames dois dias antes. "Se fizerem aquilo [de novo], a torcida terá de esperar, porque vou tirar o meu time [do gelo]", avisou Barry Trotz, técnico dos Preds, quando lhe perguntaram se ele estava preocupado com o assunto. Até aí, o caso estava limitado à verborragia oriunda dos afetados e dos que temiam ser afetados e à estupidez de um neandertal que se achou o gostosão por uma noite. Mas, como os deuses do hóquei estavam mesmo brincando com a NHL havia quase um mês, eles parecem ter decidido que ainda era possível adicionar um capítulo ao inferno astral.

O fato de o episódio seguinte ter envolvido os Canucks soa como vingança dos deuses sobre o imbecil torcedor dono de uma caneta laser e de um cérebro de protozoário. Depois do jogo contra os Predators, o ponta Alex Burrows, dos Canucks, acusou o árbitro Stephane Auger de tê-lo ameaçado de vingança, o que teria cumprido ao dar-lhe dezesseis minutos de penalidades ao longo da partida. Imagens mostram que, de fato, Auger e Burrows "trocaram uma ideia" durante a patinação pré-jogo.

É o diz-que-disse que tanto vemos no futebol brasileiro chegando à NHL. Quem não se lembra de Júnior Baiano, então no São Paulo, avisando para quem quisesse ouvir que o então árbitro Oscar Roberto de Godói estava bêbado ao apitar um jogo contra o Corinthians no Campeonato Paulista de 1995? Burrows não questionou o teor etílico no sangue de Auger, mas a acusação é tão grave quanto. Todo mundo sabe que, até por serem seres humanos, tanto jogadores como juízes estão sujeitos a erros de questionamento, em que uma vingança supostamente inocente parece não só plausível como obrigatória. Se Auger realmente fez o que Burrows diz que ele fez, ele não teria sido o primeiro árbitro a fazê-lo. Mas talvez tenha sido o primeiro a avisar sua vítima.

Nunca saberemos o que realmente aconteceu. A NHL falou separadamente com ambos e concluiu que não há nada que possa fazer a respeito. A não ser multar o jogador em US$ 2,5 mil. Considerando-se seu salário de US$ 2 milhões nesta temporada, seria o equivalente a uma nota de cinco ou dez reais para nós, assalariados do Brasil. Ou seja, se tanto, vai fazer cócegas. Mas a grande punição talvez sejam as vistas grossas que os árbitros talvez passem a fazer, voluntária ou involuntariamente, em penalidades sofridas pelos Canucks. Como escreveu Greg Wyshynski, do Puck Daddy: "A diferença de vantagem numérica para desvantagem numérica dos Canucks de agora até o fim da temporada será a estatística coletiva mais vigiada do hóquei."

Já Auger não recebeu nem o tapinha na mão, depois de alegar que o que disse a Burrows antes da partida foi que "não precisava de ajuda para apitar", em referência ao lance que deu origem ao episódio, um mês antes, quando o ponta dos Canucks se jogou para cavar uma penalidade, que acabou apitada pelo juiz. A explicação de Auger contrasta bastante com o que Burrows disse, finalmente cristalizando o caso como a palavra de um contra a do outro. Auger saiu impune e já apitou outro jogo nesta semana.

Como se tudo isso não fosse suficiente, tivemos ainda outro caso, que só não é semelhante a alguma situação tupiniquim porque as arcaicas regras da Fifa não permitem o auxílio de replays nas decisões dos árbitros. Entretanto, é difícil discordar que haja uma Lei de Gérson aplicada. Tudo começou no dia 7, quando os Penguins perdiam em casa para os Flyers por 5-3 quando Simon Gagné chutou a gol para uma aparente defesa de Marc-André Fleury. Os árbitros não deram gol, mas, como houve dúvida, o lance foi revisto. A NHL, como de costume, solicitou as imagens para a emissora local, no caso a Fox Sports Network de Pittsburgh.

Nenhuma das imagens comprovou que o disco entrou, então a decisão do gelo foi mantida, e o jogo seguiu 5-3 para os Flyers, que eventualmente venceriam por 7-4. Mas, como se por coincidência, logo depois que o disco caiu a emissora "descobriu" um outro ângulo que mostrava o disco dentro do gol e mostrou a seus telespectadores. Como o jogo já estava rolando novamente, não havia mais nada que se pudesse fazer para que a decisão correta fosse tomada. Se o lance já teve uma grande e merecida repercussão com a vitória dos Flyers, imaginem se os Penguins tivessem conseguido virar depois de um favorecimento que nada teve a ver com o acaso?

Da mesma maneira como tivemos o Ano do Brasil na França, o que vimos desde meados de dezembro foi quase como um Mês do Futebol Brasileiro na NHL. Esperemos que ele já se tenha encerrado e que possamos, num futuro próximo, ter o Milênio da NHL no Futebol Brasileiro. Copiando, claro, as coisas boas.

Alexandre Giesbrecht, 33 anos, passou o réveillon no litoral norte de São Paulo.
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Página publicada em 15 de janeiro de 2010.