Por: Ermitão Remista

Por mais significativo e bem produzido que tenha sido o último número de TheSlot.com.br, faltou algo. Não creio que perverteram a história, apenas abstiveram-se de mostrá-la em seu íntimo. Não expuseram a chaga maior Habitant. Aquela ferida que jamais será curada.

Por isso estou aqui e peço licença aos editores dessa publicação para ajudar a ''completar'' a obra. Faço isso crente de que esse é um ambiente democrático, onde todo leitor tem sua opinião levada em conta.

Assim como a Playboy abusa do Photoshop para eliminar a flacidez dérmica de seus destaques, deixar de falar da final do milênio foi como tentar mostrar a beleza do mundo eliminando seu lado humano. A maquiagem digital cometida no número 252 foi a ausência de referência à grande final de 1967.

Não importa quantas Copas os Canadiens já tenham conquistado, a que mais desejavam foi perdida. Não tem volta. Por mais que o tricolor sonhe em desfazer aquele capítulo, uma viagem no tempo para refazer a história é uma possibilidade ilógica. Eu garanto que não tem como.

Em 1967, o Canadá celebrava seu centenário como confederação. Um momento histórico para o país. Montréal era a sede de uma exposição mundial que foi visitada por 50 milhões de pessoas. Um dos pavilhões mais bem localizados da Expo 67 continha um espaço reservado para a Copa Stanley que, nas contas dos locais, seria conquistada pelos favoritos Canadiens. Pessoas de todo o planeta poderiam apreciar o troféu.

A NHL também vivia um momento especial, era o ano de seu cinquentenário e aquela temporada seria a última a contar apenas com os ''Seis Originais''. Então nada melhor que um tira-teima entre os dois gigantes canadenses. Em seis finais até então, cada um havia vencido três vezes. Era a supremacia em finais entre esses dois rivais.

O grande time daquele ano havia sido o Chicago Blackhawks, que apoiado pelo super trio ofensivo Bobby Hull, Stan Mikita e Phil Esposito, foi o vencedor da temporada regular. Foram nossos rivais na primeira fase dos playoffs. Assombramos a liga ao eliminá-los em seis jogos. Esposito foi anulado de forma categórica pelo veteraníssimo linha azul Marcel Pronovost e acabou negociado junto aos Bruins poucas semanas depois. Eram os Leafs mudando o rumo natural das coisas.

Os Canadiens entraram nos playoffs voando. Onze jogos de invencibilidade. Se mantiveram quentes ao varrerem o New York Rangers — dando uma semana de descanso para os francófonos antes da finalíssima. Os Habs eram os atuais campeões e possuíam três linhas capazes de fazer estrago, cada uma delas liderada por um central de peso — Jean Beliveau, Henri Richard e Ralph Backstrom.

Já os Leafs eram conhecidos como a caravana geriátrica por onde passava. Eram muitos os veteranos. Se fosse uma equipe da mercantilista Elitserien, provavelmente carregaria uma tonelada de adesivos da Discreet Elástica em sua vestimenta.

Os tricolores possuíam alguns veteranos também, mas tinham mais pernas jovens, como a do goleiro Rogatien Vachon, de apenas 21 anos. Nosso treinador George ''Punch'' Imlach tentou mexer com o psicológico do garoto, o chamando de arqueiro de equipe júnior B, mas Vachon venceu fácil o duelo inicial com o experimentado Terry Sawchuk. Das tribunas, Maurice Richard viu seu irmão Henri marcar um hat trick. Tudo dentro do esperado. Aquele 6-2 lembrou bastante o confronto da temporada anterior, quando os Leafs foram varridos.

Para o jogo 2, também em Montreal, Imlach resolve sacar Sawchuk. Johnny Bower reassume seu lugar entre as traves e emudece o Fórum. Série empatada após o 3-0. O capitão azul George Armstrong deixou o jogo com uma contusão no joelho e seria dúvida para o restante das finais. A carga de drama aumentava. Armstrong, além de capitão, era uma dos remanescentes do tricampeonato de 1962-64 — mesmo status de Bob Pulford, Dave Keon, Frank Mahovlich, Bobby Baun e Tim Horton, entre os patinadores de nome.

Bower continuaria a frustrar os quebequenses no jogo 3, agora no Maple Leafs Gardens, defendendo 53 chutes e mantendo sempre sua equipe com chances no jogo.

Nesse encontro, já no segundo tempo extra, Henri Richard recebeu um passe suicida de J.C. Tremblay. Forçado a olhar para o gelo em busca do disco, Richard ficou em posição vulnerável, oportunidade não desperdiçada pelo defensor Allan Stanley. O tranco foi brutal e certeiro. Richard, herói do jogo 1, deixou a partida e se tornou um fantasma no restante das finais.

Pulford acabaria entrando para a história da humanidade com um gol místico, que ainda ecoa no planeta hóquei. Após 88 minutos de intensa batalha, os Leafs recuperavam a vantagem na série. Um jogo tão especial que, por razões que não se sabe por que, foi ignorado pela programação do Roja Directa.

A marcha incontível rumo à glória extrema sofreu um forte abalo no jogo 4. Bower, de atuações irrepreensíveis na série, sentiu uma contusão durante o aquecimento. Sawchuk não esperava por isso e, provavelmente tendo pisado na jaca na noite anterior, foi presa fácil para os Habs. A torcida em Toronto pegou pesado e vaiou Sawchuk com a potência de 14 mil tenores.

Indivíduo de brios e certamente um dos maiores arqueiros da história, Sawchuk foi o dono do jogo 5, em Montreal. Uma aula de como se portar entre as traves. A vitória por 4-1 teve ainda grandes colaborações de Dave Keon e Frank Mahovlich, que foram desafiados por companheiros a colaborarem mais ofensivamente.

Subitamente, eram os Canadiens que se encontravam contra a parede. Terror súbito e agonia invadiam os antes confiantes tricolores. Para amedrontar ainda mais as linhas inimigas, o capitão George Armstrong voltaria ao gelo para a sexta partida.

Vaiado no MLG no jogo 4, Sawchuk jogaria pela Copa, pelo orgulho e, pra que omitir, pelo dinheiro no sexto confronto. Se hoje até mesmo um nefasto como Dan Cloutier conta seus milhões, naqueles idos o salário anual de uma estrela como Sawchuk era de apenas US$ 18,5 mil. Em caso de título, cada atleta dos Leafs receberia US$ 5,25 mil.

Lembro-me perfeitamente daquele 2 de maio de 1967. Dia úmido, com temperatura agradável de 23°C. Dentro do Maple Leafs Gardens a temperatura era muito superior. Ingressos a US$ 7, US$ 6, US$ 4,5. Soma com a qual, hoje, nenhum daqueles 15.977 pagantes compraria sequer um programa no ACC. Como sei todos esses detalhes? Não vou dizer, mas, pela riqueza das informações, já podem imaginar a resposta.

O vitorioso treinador rival Toe Blake resolveu sacar o jovem Vachon e ir com o obeso Gump Worsley, de 37 primaveras e titular no título de 1966.

O primeiro ato foi físico, com poucas chances reais de gol. Beliveau, tido como atleta limpo levou seu taco a face de Allan Stanley após o apito. Quando seu jogador mais técnico exibe essa mostra de descontrole...

Stanley deu a resposta ideal aos seis minutos do segundo período, dando início a uma jogada dois-contra-um que culminou com Ron Ellis aproveitando o rebote dado por Worsley.

O craque sem mídia, Jim Pappin, ampliaria já nos segundos finais, fazendo com que os Canadiens fossem para as dependências de cabeça baixa. Enquanto isso, no vestiário local, Red Kelly, que estava em vias de lograr sua 8.ª Copa Stanley, desfilava tranqüilidade.

Outro multicampeão, porém, tratou de dramatizar o encontro. E logo Dick Duff, cria de Toronto, tentando azedar a festa da ex-equipe. Nossa mente no banco também tratou de acrescentar euforia no jogo, colocando linhas azuis para disputar faceoffs em nossa zona defensiva. Beliveau vencia quase todas as disputas e Sawchuk tinha que salvar a horta.

Toda a agonia começou a desvair-se quando, restando 55 segundos, Blake retirou seu goleiro. Imlach mandou sua nata pro gelo. Kelly, Stanley, Armstrong, Horton e Pulford. Então os Leafs fecharam a urna mortuária do adversário. Ninguém menos que o capitão Armstrong para fazer o terceiro gol. Logo ele, que só defendeu o time que carrega o símbolo pátrio no peito, em sua longa carreira na NHL.

Não havia mais dúvida. O clássico do milênio tinha dono. A maior Copa Stanley já vista era azul e 1967 ficou eternizado como o ano da congruência Toronto Maple Leafs e Canadá. É o time da nação. Desde então a vida é uma festa. São 42 anos festejando a mais simbólica das finais.

E também é a pendência que incomoda o rival tricolor. Mesmo que algum dia os Canadiens cheguem a confrontar os Leafs em uma final, ela não será a do centenário da Confederação do Canadá.

Sendo assim, e parafraseando Vincent van Gogh, "La tristesse durera toujours" ("A tristeza durará para sempre").

Muito obrigado pelo espaço e já aguardo por 2017, quando vocês publicarão uma edição muito mais especial sobre o centenário do Toronto Maple Leafs!

Ermitão Remista
Barcarena-PA

Ermitão Remista prefere não dizer seu nome verdadeiro, mas garante que é mais homem que Jacy Borreaux.

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Dave Keon: levando medo aos corações tricolores.

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Se a foto é colorida, não faz tanto tempo assim.

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Céu estrelado. Dois dígitos em Copas.

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Página publicada em 15 de janeiro de 2010.