Por: Lindsay Berra

Ele deixou o gelo há 15 minutos, mas Mike Keane ainda está sentado em seu lugar no vestiário do Manitoba Moose, vesido com suas proteções. Ao redor dele, os garotos — e, comparados com Keane, eles são garotos — penduram seus equipamentos, marcham em direção aos chuveiros e se trocam, dando nós em suas gravatas enquanto falam sobre seus planos para depois do jogo. Não que eles não se importem com o fato de o Moose ter perdido o segundo jogo em duas noites para o Rochester Americans, e com requintes de déjà vu: ambas depois de estar vencendo por 2-1 no terceiro período. É que Keane sofre com as derrotas de maneira mais aguda que a maioria. Aos 39 anos, ele é mais velho que qualquer um no vestiário. E, como capitão, ele se sente responsável por aqueles gols no fim. Mas, depois de duas décadas de hóquei profissional, as derrotas não deveriam doer assim. Afinal de contas, ele já tem um legado.

Um sujeito pequeno com um coração enorme, Keane encontrou um nicho confortável na NHL, jogando 1.161 partidas ao longo de 16 temporadas. Ele ganhou sua primeira Copa Stanley em 1993, com os Canadiens, ganhou outra com o Avalanche em 1996 e uma terceira com os Stars em 1999, tornado-se um dos apenas oito jogadores que ganharam três Copas com três times diferentes. Então ele poderia ter se aposentado — sem arrependimentos, sem perguntas por responder —, como Ron Francis e Mark Messier, depois da temporada de 2004-05. Ele poderia ter tentado a carreira de técnico, como os ex-colegas Guy Carbonneau e Kirk Muller o fizeram, com os Canadiens. Todos achavam que pendurar os patins fazia sentido. Todos menos Mike Keane.

Triste, vão dizer alguns — mais um profissional que não consegue aceitar que sua carreira acabou. Mas Keane não se encaixa nesse modelo certinho. Tendo evitado as contusões crônicas que assombram a maioria dos que passaram a vida na NHL, ele tem a mente de um velho no corpo de um homem. É por isso que ele ainda acha que tem algo a contribuir para o esporte. Infelizmente, a afeição já não é mais mútua. Hoje em dia, os times da NHL se preocupam com o teto salarial e têm medo de investir em pernas velhas. Por isso, em outubro de 2005, Keane engoliu o orgulho, deixando-o com o fogo em sua barriga, e voltou às ligas de baixo pela primeira vez desde 1988.

Mas o hóquei das ligas de baixo não significa necessariamente um desgosto, e é por isso que Keane ainda não tomou banho nesta noite de dezembro em Winnipeg. Não importa em que nível ele esteja jogando, Keane quer é ganhar. O Moose chegou perto no ano passado, tendo perdido o jogo 7 das finais da Divisão Norte para o Grand Rapids Griffins, e agora Keane quer trazer a Copa Calder, da AHL, para Manitoba. E, se todo o seu trabalho duro valer uma última voltinha na NHL, melhor ainda. "O Mike realmente acha que ainda pode jogar na NHL", opina o técnico do Moose, Scott Arniel. "E não tenho tanta certeza de que ele não pode."

Longe do disco, há uma briga. Não está muito claro quem empurrou quem ou quem começou o quê nesta noite de novembro, mas Keane jogou para longe suas luvas e seu capacete, revelando seu crânio calvo para a enlouquecida torcida composta por 5.957 fanáticos pelo Moose uniformizados, no MTS Centre. E o cara que tirou Keane do sério não sabe exatamente o que pensar. A pouco mais de quatro metros de distância, ele tira seu capacete com cautela e o joga para o lado. A hesitação é estranha, porque jogá-lo longe é parte do que o durão dos Griffins, Darryl Bootland, faz da vida. Ele passa suas mãos pelo seu cabelo molhado de suor, arregaça as mangas e cuidadosamente levanta os punhos, imitando a postura de Keane. Dá para ler seus lábios das arquibancadas. "OK, velho", zomba, "se você realmente quer brigar..."

Foram comentários como esse que inicialmente colocaram Bootland no radar de Keane. Ao longo da série do Manitoba contra o Grand Rapids nos playoffs do ano passado, Bootland não fechava a matraca. A mesma coisa na semana passada, a mesma coisa hoje: Você está velho. É hora de se aposentar. Onde está sua cadeira de rodas? Então, sim, Keane realmente quer brigar.

Os homens se engalfinham, mãos direitas apertando com força a camisa do outro, a briga sendo uma frenética seqüência de socos de esquerda. Keane, com magros 1,78 m e 84 kg, contra os mais musculosos 1,88 m e 91 kg de Bootland, consegue um direto de surpresa no queixo do homem maior. A torcida ruge em aprovação. Os dois lutam por mais alguns segundos, antes de Keane, ao desferir uma série de esquerdas, perde o equilíbrio e cai ao gelo enquanto os árbitros auxiliares separam os dois. Enquanto é conduzido para o banco de castigos, o capitão é aplaudido de pé.

Claramente, o velho ainda se garante, algo que o gerente geral do Moose, Craig Heisinger já sabia havia algum tempo. Zinger conheceu Keane em 1983, quando este era um pequeno novato nos juniores, defendendo o Winnipeg Warriors e Heisinger era o roupeiro do time. Durante o locaute, Heisinger começou a buzinar no ouvido de Keane: "Sabe, você sempre pode vir jogar aqui." Heisinger sabia da maratona de treinamentos a que Keane estava se submetendo, sabia das horas que ele passava na academia. "Ele é como um assento de ônibus de North End", conta Heisinger, referindo-se a um bairro pobre de Winnipeg, "todo rasgado e cortado".

Heisinger também sabia que ninguém ama mais jogar hóquei do que Keane. Então, quando o locaute se encerrou e nenhum tima da NHL ofereceu sequer o mínimo de US$ 450 mil, Keane assinou contrato com o Moose por pouco menos de US$ 100 mil. Não que o dinheiro fosse importante. Mesmo nunca tendo ganho mais que US$ 2,5 milhões em uma temporada, Keane não está desesperado por grana; recentemente, ele construiu uma mansão no bairro de River Heights, na zona oeste da cidade. É que Keane estava cruzado os dedos, na esperança de que um time da NHL em busca da liderança de um veterano resolvesse chamá-lo a tempo para os playoffs. Mas o dia-limite chegou e passou no ano passado, e o telefone não tocou.

Tudo bem. Keane renovou de bom grado seu contrato com o Moose para esta temporada. E, como no dia-limite de trocas deste ano na NHL de novo passou em branco para ele, é aposta quase certa de que ele vai renovar por uma segunda vez.

Então é a NHL ou o Moose, já que Keane não vai defender qualquer time da AHL. Ele cresceu em Winnipeg, sonhando em vestir a camisa dos Jets antes de eles se tornarem o Phoenix Coyotes e o Moose se tornar o único time profissional da cidade. Tinha de ser aqui, no coração do Canadá, chato como uma panqueca, onde dizem que você pode enxergar seu cachorro fugindo por cinco quilômetros — isso se o Totó não for levado pelo vento. Sem montanhas para impedir que o vento chicoteie pelas planícies, Winnipeg experimenta algumas das temperaturas mais baixas do país. A esquina das ruas Portage e Main (principal), a três quarteirões do MTS Centre, é conhecida como a esquina mais fria do Canadá.

Mas os pais de Keane ainda moram na casa onde ele foi criado, a cinco ruas de sua nova casa. Seu irmão, sua irmã e seus amigos de infância moram por ali também. E em todos os jogos em casa sua esposa, Tammy, seu filho Jackson, de nove anos, e sua filha Olivia, de sete, praticamente acampam atrás do gol do Moose. Keane até conseguiu assistir ao time infantil de Olivia jogando no gelo do MTS Centre antes do primeiro jogo do Moose em casa, em outubro. É verdade que o Moose não é exatamente os Jets e a torcida é um pouco mais escassa que na NHL, mas Keane ainda assim está vivendo um sonho: ele está jogando hóquei profissional em Winnipeg.

Não que seus amigos na NHL entendam. Alguns, como Muller, só riem. "Todo jogador diz que quer jogar enquanto conseguir", diz ele. "Mas, geralmente, eles estão falando da NHL." Outros, como Brett Hull, chamam-no de louco. "Ele disse: 'O que diabos você está fazendo? O que você está pensando?'", lembra Keane. "Você nunca vê uma superestrela fazendo isso."

Ele está certo. Quando os jogadores de elite se aproximam do fim da linha, a queda nas suas atuações é visível nas estatísticas. Mas Keane nunca foi um grande pontuador; os 168 gols que marcou em sua carreira provam isso. Seu jogo era — e é — cheio de sutilezas que apenas técnicos, jogadores e os torcedores mais atentos valorizam. Keane faz por merecer seu contracheque na AHL com a mesma tenacidade defensiva que ele demonstrava na NHL, bloqueando chutes, trabalhando na desvantagem numérica e fazendo todas as pequenas coisas coisas direito: tirando o disco, dando passes bem na fita, indo com agressividade para o ataque, tendo um grande orgulho de não tomar gols. "É isso que eu quero fazer", avisa. "Enquanto eu conseguir ser um fator na maioria dos jogos, talvez o melhor jogador em alguns deles, eu vou jogar."

E o Moose não precisa que Keane seja um dominador. Ele já esteve onde toda criança com um taco na mão quer chegar, então, quando ele fala, seus colegas de time ouvem. Eles imitam seus hábitos no gelo, seguem suas ordens, passam fita em suas meias como ele o faz. Ele é outro técnico, que por acaso participa de várias jogadas.

E, ocasionalmente, o grande raçudo tenta uma jogada por entre as pernas que ele nunca teria ousado tentar na NHL e acaba marcando um gol. No começo da temporada, Heisinger pediu a Keane que melhorasse os três gols e 14 pontos que ele acumulou em 69 jogos pelo Moose na temporada passada. Keane obedeceu. Contra o Chicago, em outubro, ele roubou o disco de um defensor dos Wolves enquanto o marcava em uma desvantagem numérica. Ele fintou, cortou para o meio e mandou o gol da vitória na gaveta. Ele ainda marcou um gol em rede vazia no último segundo, seu terceiro na temporada, igualando o total da temporada passada. Ao longo de 44 jogos, Keane já totalizava 16 pontos, e em janeiro foi escolhido capitão do time canadense no Jogo das Estrelas da AHL, o primeiro jogo das estrelas de sua carreira profissional. "Mike ensina como se preparar, como estar sempre pronto, como se concentrar, como se comunicar, o que esperar", conta Mike Brown, ponta de 21 anos do Moose. "Ele sabe muito sobre o jogo."

E é por causa do que Keane sabe que ele não está preocupado com a vida depois do hóquei. Ele declinou duas ofertas de trabalho como assistente técnico na NHL e uma de técnico na AHL para jogar pelo Moose, e é bem provável que mais ofertas surjam. Mas ele está esperando é por uma oferta que ele não recusaria. Keane achava que ainda havia a chance de um time da NHL decidir que seria interessante para suas chances nos playoffs ter em seu elenco alguém com tantas Copas Stanley no currículo. Ele até poderia estar certo, já que, antes do dia-limite, olheiros de alguns times da NHL disseram à ESPN The Magazine que tinham suas atenções voltadas para Manitoba. "Mike Keane traz consigo muita experiência", disse um deles. "Se você quer levar a sério suas chances de ganhar uma Copa, você precisa de gente experiente." Acabou não dando em nada, o que significa que o Moose não precisará enfrentar os playoffs sem seu capitão. Para Keane, a decisão de deixar o time seria dura, mas ele a tomaria. "Aconteceria se tivesse de acontecer", filosofa.

Enquanto a próxima temporada de esperanças não vem, Keane enfrenta as cruéis viagens de 13 dias, as longas viagens de ônibus, as infindáveis sessões do filme "Penetras Bons de Bico" e os torneios de XBox em que ele é detonado por seus colegas de 20 anos. Ele vai continuar fazendo o que faz — ser o primeiro a chegar e o último a sair, esforçando-se até o apito final — e vai continuar até tudo deixar de ser tão divertido.

E por que não? Seu jogo não mudou, nenhuma parte do corpo dói e sua família está com ele, no inferno ou na NHL. Tammy já desistiu da idéia de combinar a festa de aniversário com a de aposentadoria quando seu marido fizer 40 anos, em 29 de maio. Ela está com Keane há 20 anos (eles se conheceram em Moose Jaw, quando ele jogava nos juniores) e conhece bem o homem com quem se casou. "Mike ainda adora ir para o rinque", revela ela. "Ele vai lá até em seus dias de folga. Afinal de contas, é o que ele fez durante toda a sua vida."

Ele só está seguindo um sábio conselho. Em 1992, quando os Canadiens de Keane visitaram as cidades gêmeas, o ex-ídolo dos Habs Bob Gainey estava treinando os North Stars. Os dois eram amigos; o último ano de Gainey em Montreal foi o primeiro de Keane. Andando no frio de Minnesota depois do jogo, a lenda deu ao aprendiz algo para ele pensar. "Ele me disse para jogar quantas partidas eu conseguir", conta Keane.

"Ele me disse para lembrar que, quando acabar, vai acabar para sempre."

Lindsay Berra é jornalista da ESPN The Magazine. O artigo foi traduzido por Alexandre Giesbrecht.
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Página publicada em 4 de abril de 2007.