Por: Alexandre Giesbrecht

Antes de a série entre Canadiens e Capitals começar, o site da emissora de televisão canadense CTV — aquela que boa parte dos brasileiros que baixam episódios de Lost via torrent conhecem pelo logo no canto da tela — publicou um texto em que listava os motivos por que os Habs poderiam vencer os favoritíssimos Caps em um confronto que opunha o melhor time da temporada regular ao pior entre os dezesseis classificados aos playoffs.

O texto foi ironizado pelo blog Puck Daddy: "Talvez o artigo humorítico menos intencional que você vai ler hoje: por que o Montreal Canadiens pode vir a surpreender o Washington Capitals. Dica: o Montreal teve campanha de 2-1-1 contra eles na temporada regular; RJ Umberger provocou publicamente os Capitals; e os Oilers foram surpreendidos pelos Kings em 1982. Sério, isso é tudo."

Parecia impossível que os Canadiens conseguissem fazer a zebra passear na capital americana, mas foi exatamente isso que ocorreu. E não foi uma dessas zebras que começam a se desenhar logo de cara, como, por exemplo, a vitória dos Ducks sobre os Red Wings em 2003. Os dois primeiros jogos foram à prorrogação, e cada time ganhou uma vez. No segundo jogo os Capitals viraram um jogo que peridam por 4-1. A série foi para Montreal, e os Caps venceram ambas as partidas, ficando a uma vitória da classificação.

O bocudo Alexander Semin tinha dito, às vésperas do início dos playoffs, que achava que seu time tinha de passar o mais rápido possível pela primeira fase. "Temos que ganhar rapidamente para conservas as nossas forças", disse. "Os playoffs são longos, e a sua força acaba em algum ponto."

Os Caps tinham tirado o pé no acelerador no final da temporada regular, e foi justamente isso que incitou Umberger a abrir a boca depois de uma derrota de seus Blue Jackets para o time de Alex Ovechkin. "Não creio que nenhum time do Oeste seria inferior a eles", disse. "Eles jogam da maneira errada. Eles querem se mexer o tempo todo. Eles flutuam na sua zona, procurando por disparadas cara-a-cara. Um bom time defensivo vai derrotá-los [nos playoffs]. Se você não perder o disco e os mantiver longe da vantagem numérica, eles vão se frustrar, porque ficam na própria zona um tempão."

As declarações de Umberger, cujo time teve a temporada encerrada com bastante antecedência, não foram bem recebidas em Washington, claro, mas não foram as únicas declarações alheias ter uma recepção pouco amigável por aquelas bandas. Tomáš Plekanec, atacante dos Habs, falou sobre o que considerava ser o ponto fraco dos Capitals: os goleiros. "Não é como se fôssemos enfrentar [Martin] Brodeur ou [Ryan] Miller", analisou. "Eles não têm um goleiro dominante. E quando se olha para a temporada regular percebe-se que o confronto de goleiros pende para o nosso time. Acho que você pode dizer que nossos goleiros são melhores que os deles."

José Théodore, goleiros dos Capitals, não gostou nada e retrucou: "Tomáš quem? Jágr? Oh, Plekanec. Ok, achei que você quis dizer Jágr. Não, eu não sou [Miller ou Brodeur]. Eles são dois dos melhores goleiros da liga. Eu só tenho sorte de ser parte de um bom time." Ironia das ironias, foi justamente Plekanec o autor do gol na prorrogação que deu o primeiro jogo ao Montreal. Querendo ou não, Ovechkin jogou mais lenha na fogueira após o jogo 2 quando disse ter visto o goleiro dos Habs, Jaroslav Halák, tremer ao beber água durante a reação adversária.

Palavras do russo à parte, as atuações dos Capitals a partir do terceiro período do jogo 2 credenciaram sua torcida a imaginar que as palavras de Semin seriam proféticas, e a série não teria grandes chances de chegar ao sexto jogo. Mas chegou, e chegou ainda ao sétimo, de onde, claro, não poderia passar. E, quanto mais a série avançava, mais outras palavras, as de Umberger, soavam proféticas, apesar de ele ter errado alguns dos motivos.

Se a longevidade da série já era surpreendente, especialmente para alguém que entrou em coma após o jogo 4 e só acordou às vésperas do jogo 7, mais surpreendente ainda foi o personagem que se tornou o maior responsável pela reação e depois pela classificação: Halák, aquele que supostamente tremeu de nervosismo ao se ver diante de uma situação adversa.

Ainda que Ovechkin tenha tido uma alucinação, o que se veria no jogo 3 poderia ser classificado melhor como um pesadelo para o goleiro eslovaco. Ele sofreu três gols em apenas seis chutes num período de sete minutos e meio, sendo substituído por Carey Price, que não conseguiu evitar a sonora derrota por 5-1. Para piorar a situação, Price foi escolhido para ser o titular no jogo seguinte, outro chocolate dos Capitals, agora por 6-3.

A quase ressurreição de Halák é história digna de faroeste: o caubói que é escorraçado da vila e volta como herói carregado nos braços do povo. Nos braços do povo de Quebec ele ainda não foi carregado — ainda —, mas não é nenhum exagero afirmar que ele carregou os Habitants nas costas nos três jogos seguintes.

Teria ele mesmo tremido diante da adversidade no jogo 2? Não importa mais, porque não poderia haver adversidade maior do que ter de enfrentar três jogos eliminatórios seguidos, dois fora de casa. E contra o time que já tinha garantido o Troféu dos Presidentes lá pelo Ano Novo. Diante desse obstáculo Halák sequer piscou.

Não que ele tivesse tempo para piscar nesses jogos, claro. Nesses três jogos teve pela frente 134 chutes e parou 131 deles. Isso dá um aproveitamento de 97,8%, coisa de outro mundo em uma amostra tão ampla. Só no jogo 6 ele fez 53 defesas, quebrando o recorde da franquia para jogos encerrados no tempo regulamentar. Não é à toa que a torcida começou a compará-lo a Ken Dryden e Patrick Roy, outros goleiros que, vestindo a camisa vermelha e azul, surgiram do nada para levar o time nas costas. Eles ficaram com o título; se Halák seguir a escrita...

Por mais que os números de Halák sejam de se arregalar os olhos, ele não jogou sozinho. A defesa à sua frente contribuiu, e muito, para o sucesso. Os Canadiens lideraram a primeira fase com 182 chutes bloqueados, nada menos que 53 a mais que o segundo colocado, o Ottawa Senators. Se dividirmos esse valor por sete, temos exatamente 26 chutes que Halák não teve de enfrentar a mais por jogo.

O excelente trabalho da defesa canadense só não neutralizou (embora tenha contido razoavelmente bem) a primeira linha dos Capitals. O ataque dos Habs nem precisou ser brilhante nesses últimos três jogos para consolidar a zebra. Mas mesmo nos momentos sem brilhantismo a ajuda de Mike Green, o perfeito exemplo de jogador que coloca aspas em sua posição ("defensor"), decidiu. O jogo 7 provou isso, primeiro com a bizarra penalidade cometida por Green no campo de ataque, em um lance que não deveria ter grandes consequências, mas resultou em um gol em vantagem numérica poucos segundos depois. Em segundo, com um dos lances defensivos menos, bem, defensivos da história, quando o candidato ao Norris — surreal, não? — tentou... eu não sei o que ele tentou, mas deu o gol para Dominic Moore de presente.

Halák sofreu o gol de honra dos Caps em cada um dos três jogos, o que é quase injusto, pois ao menos um shutout ele merecia, mas é como se fossem três "shutouts morais". O gol sofrido no jogo 7 foi a menos de dois minutos e meio do fim, e serviu apenas para dar uma amassadinha nas suas estatísticas e para dar um pouquinho de esperança à torcida presente ao Verizon Center. O estádio ficara silencioso como um túmulo após o gol de Moore e parte da torcida já deixava seus assentos.

Enquanto isso, quem fazia festa era justamente a torcida que não verá seu time em casa por quatro vezes em nenhuma das séries, ainda que ele vença todas. Nem precisa. A festa em Montreal é nas ruas mesmo, com o povo. Como deve ser.

Alexandre Giesbrecht, publicitário, contribuiu com diversas fotos para a Wikipédia nesta última semana.
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Página publicada em 30 de abril de 2010.