Por: Guilherme Calciolari

As férias da NHL foram marcadas por dois tópicos: o contrato de Ilya Kovalchuk — apenas uma desculpa para a liga impedir contratos similares — e a explosão do goleiro Dan Ellis, via Twitter, a respeito dos descontos que os jogadores sofrem em seus salários.

Esses descontos, que na verdade são garantias para que a liga não entre em colapso financeiro, precisam de alguns passos para ser entendidos. São eles:

A matemática da NHL
A temporada da NHL acaba. Num escritório, Gary Bettman e seus contadores estão reunidos conferindo cada receita em nome da liga. Relatórios precisos sobre o faturamento de cada equipe, as cotas de televisão e rádio, valores arrecadados de empresas como Reebok e EA Sports. A diretoria da Liga Nacional de Hóquei tem em mãos um relatório sobre suas receitas.

Numa outra sala, economistas projetam as condições de mercado para o ano seguinte, enquanto outros funcionários entram em contato com cada franquia buscando informações sobre mudanças nos preços de ingressos, e perguntam à Reebok quantas camisas a mais serão vendidas. Com esses números, a NHL tem uma ideia geral de quanto será arrecadado na próxima temporada.

Esses dados são repassados à Associação de Jogadores, a NHLPA. Cabe à NHLPA a decisão sobre a aplicação ou não de uma alíquota inflacionária de 5% sobre esse valor. Esta decisão é informada à liga, que faz mais contas. Independentemente desta aplicação, uma porcentagem da receita da liga é destinada aos jogadores (entre 54 e 57%).

A seguinte conta é feita: (projeção de receita) x (57%) / 30 (número de franquias). Com este número se chega ao valor médio das folhas salariais das franquias da NHL. Para a temporada 2010-2011, a equação fica (US$ 2,7 bilhões) x (57%) / 30, chegando ao valor médio de US$ 51,3 milhões. A essa projeção são acrescidos (e também subtraídos) aproximadamente $8 milhões, chegando ao teto (e piso) salarial para a temporada.

A matemática dos jogadores
Os salários dos jogadores são anuais, mas sua forma de pagamento não, pois normalmente os jogadores são pagos a cada duas semanas. Esses pagamentos ocorrem entre a metade do mês de outubro e a metade do mês de abril.

Porém, as parcelas salariais não são sempre iguais. Considerando que os salários têm lastro na projeção de receitas da NHL, as parcelas podem variar conforme essas previsões se mostrem incorretas, com parcelas por vezes 25% menor daquela projetada inicialmente.

A esse desconto se dá o nome em inglês de "escrow", que nada mais é do que uma caução, uma garantia de que os pagamentos dos jogadores não implicarão no não-pagamento de outras dívidas assumidas pela liga e suas franquias.

A caução
Como dito, a liga projeta sua receita no início da temporada. Ocorre que, nas últimas temporadas, a projeção não vem sendo alcançada. Dessa forma, aquele valor inicialmente destinado aos jogadores acaba se provando maior do que o limite de 57% da renda. Para se enquadrar nesse cálculo, os salários são descontados no que for necessário para alcançar os 57%.

Nas duas primeiras temporadas após o locaute, as projeções foram superadas e os jogadores receberam salários acima do esperado. Já nas temporadas seguintes, a arrecadação ficou abaixo das expectativas, e o valor dos salários ficou em torno de 12% menor que o nominal, com algumas parcelas reajustadas em até 18% ou 25% — devidamente compensadas no fim da temporada, com o balanço final da arrecadação.

O problema dos contratos de uma década
A solução parece ser simples: reduzir a expectativa de arrecadação para acabar com a caução. Porém, o problema é maior. Afinal, a porcentagem destinada aos jogadores influencia no cálculo do teto salarial, mas não no salário dos jogadores.

Com as manobras executadas pelas gerências das franquias para burlar o teto salarial, o gasto com salários é muito maior do que o teto. Tome o Detroit como exemplo: os Red Wings estão abaixo do teto salarial de US$ 59,4 milhões, mas o total de salários a ser pago é de US$ 62,8 milhões. Mesmo se as projeções iniciais estivessem corretas, há uma diferença de 5,7%, que seria descontada de qualquer forma.

A NHL já alterou o Acordo Coletivo de Trabalho, mudando o cálculo para determinar o peso de um jogador no teto salarial, mas os dez jogadores (Vincent Lecavalier, Roberto Luongo, Marian Hossa, Henrik Zetterberg, Chris Pronger, Daniel Alfredsson, Mikka Kiprusoff, Marc Savard, Johan Franzén e Ilya Kovalchuk) que já tem contratos messiânicos continuarão influenciando essas contas, por receberem salários muito acima de seus impactos no teto.

Num estudo publicado no blog Mc79hockey.com ainda antes da assinatura do contrato de Kovalchuk, verificou-se que os outros nove jogadores da lista vão receber efetivamente US$ 73 milhões a mais do que seus pesos no teto salarial nos próximos dez anos. Mais ainda: a cada milhão que esses jogadores recebem, os outros jogadores perdem, em média US$ 4,3 mil.

E o prejuízo que os dez jogadores dão agora não será compensado depois. Todos eles assinaram contrato antes dos 35 anos, o que significa que eles podem se aposentar a qualquer momento, e seus salários não terão mais influência no teto salarial de suas equipes ou no quadro de salários da liga como um todo.

Por isso tudo, fica difícil compreender o porquê da aprovação dos 5% de inflação por parte da NHLPA nesta temporada. Com esse fator, a Associação de Jogadores deu aos times cerca de US$ 3 milhões a mais no teto salarial para manipular esses longos contratos ― ainda que limitados após o imbróglio de Kovalchuk.

O efeito da caução em 140 caracteres
Insatisfeito com a perda de dinheiro, o goleiro Dan Ellis, do Tampa Bay Lightning, postou o seguinte comentário em sua conta do micro blog Twitter: "Você ficaria feliz se perdesse 18% da sua renda? Honestamente, estou mais preocupado com dinheiro hoje do que nos tempos de faculdade."

A saber, Ellis tinha salário (nominal) de US$ 1,75 milhão nas duas últimas temporadas, e seu novo contrato tem valor de US$ 1,5 milhão pelos próximos dois anos. Ou seja, com caução ou não, o goleiro é um milionário. Por isso — e por ter postado uma foto de seu novo Jaguar pouco tempo antes —, Ellis foi execrado por internautas e pela mídia especializada.

Mas qual foi o erro de Ellis? O twitter não é o lugar ideal para se expressar em relação a assuntos financeiros, mas em que ele está errado? Perder um quinto do salário nunca vai agradar ninguém, não importa qual seja o salário.

E quanto ao comentário dos tempos de faculdade, vale lembrar que as pessoas vivem com aquilo que recebem. Um universitário de 20 anos sabe lidar com o que recebe trabalhando na lanchonete do campus, afinal ele só tem que cuidar de si mesmo. Mas hoje Ellis é um homem de 30 anos, com família, que há dois anos vive com tudo de melhor. Na faculdade ele contava com um salário digno de escravo toda semana, mas esse salário era pago. Não importa se você recebe US$ 10 dólares ou US$ 1 milhão, é dinheiro com que você conta no fim do mês.

A forma de se expressar não foi a melhor, mas o conteúdo é dos mais importantes. O tratamento dado aos jogadores deve ser sempre o melhor, pois são eles que se expõem no mínimo 82 noites por ano. Hoje os atletas convivem com um teto salarial que limita seu poder de negociação — times grandes estão perto do teto, times pequenos não tem dinheiro para pagar — e sofrem constantes descontos nos salários.

A situação deve se estender até 2012, quando expira o atual Acordo Coletivo de Trabalho, mas contratos longos e a caução devem ser moeda de troca importante nas negociações do próximo acordo.

Guilherme Calciolari é um dos novos colunistas de TheSlot.com.br e ainda não se acostumou a enviar sua assinatura para a coluna.

Edição Atual | Edições anteriores | Sobre TheSlot.com.br | Comunidade no Orkut | Página no Facebook | Contato
© 2002-10 TheSlot.com.br. Todos os direitos reservados. Permitida a reprodução do conteúdo escrito, desde que citados autor e fonte.
Página publicada em 17 de outubro de 2010.