Por: Thiago Leal

Quando a personalidade é maior que os títulos
Algumas coisas na vida, especialmente no esporte, são injustas. Por exemplo: Johan Cruyff ter jogado apenas uma Copa do Mundo e não tê-la vencido; Dan Marino jamais ter disputado um Superbowl; a forma como Mario Lemieux foi arrancado dos rinques depois de tantas contusões; ou mesmo a intensa busca do Ottawa Senators por uma Copa Stanley que nunca vem.

Uma dessas injustiças é a forma melancólica com que Steve Yzerman se despediu do rinque da Joe Louis Arena após a eliminação prematura dos Wings na pós-temporada 2005-06. Aquela imagem do homem cabisbaixo entrando no vestiário, definitivamente, não se encaixa nos seus 23 anos à frente da franquia.

Stephen Gregory Yzerman foi recrutado pelo Detroit Red Wings num dos períodos mais negros da história da equipe vermelha. Os anos conhecidos como "Dead Wings" se sucediam desde a expansão de 1967 e o clube teve 16 treinadores efetivos em seu comando, todos fracassando. Foram 16 temporadas com apenas duas aparições em pós-temporada, só para se ter idéia do calvário onde os Wings tinham se metido. De fato, este clube estava enterrando e assistia à dominação do Montreal Canadiens intercalada por Boston Bruins, Philadelphia Flyers e New York Islanders.

A chegada de Steve no time que vinha sendo treinado por Nick Polano há um ano indicava mudança. O jovem talento da seleção juvenil canadense marcava o início da era de reconstrução de uma equipe tradicional que estava aos pedaços em detrimento de franquias de expansão. Yzerman fora a quarta escolha geral daquele recrutamento, sendo a primeira do Detroit. E o jovem de ascendência holandesa não teria ao seu lado Wayne Gretzky, Peter Stastny, Bryan Trottier ou Denis Savard. Sua companhia seria nomes como Danny Gare, John Ogrodnick ou Ron Duguay. Ou seja... o trabalho não seria facilitado de forma alguma. Não dá para saber se, quando chegou, Yzerman intencionava "mudar o mundo". Mas o que quer que se passasse em sua cabeça, sem dúvida iria dar muito trabalho. No final das contas, o fato é que o jovem de 18 anos jogou a temporada completa pelos Wings e liderou a equipe em pontos: foram 87, o suficiente para devolver os Wings à pós-temporada pela primeira vez depois de cinco temporadas.

O Detroit também não foi muito longe... caiu logo na primeira rodada, que era a Semifinal de Divisão... contra o St. Louis Blues, por 3-1 na melhor de cinco jogos. De qualquer forma, Yzerman chegava trazendo bons ventos sob as velhas asas da Cidade-Motor e os Wings estavam prontos para levantar vôo outra vez.

O passo seguinte para a reconstrução se deu com o "C" posicionado no ombro de Yzerman, escolha feita pelo treinador Jacques Demers. O calouro que liderou a franquia na sua estréia já tinha três anos de casa e, com 21 anos de idade, quebrava o recorde que Bobby Clarke estabeleceu em 1972 como jogador mais jovem a assumir o posto de capitão de uma equipe da NHL. Colocar Yzerman como capitão da franquia foi algo tão significativo quanto Clarke e os Flyers em 1972. Era necessário que alguém que tivesse a cara dos Wings, como Gordie Howe e Alex Delvecchio no passado, liderasse a equipe. Depois de se classificar para a pós-temporada em 1983-84 e em 1984-85, os Wings voltaram a ficar de fora em 1985-86. A denominação de Yzerman como capitão em 1986-87 e a chegada de Adam Oates e Darren Veitch foram determinantes para mais um retorno à pós-temporada. Desta vez, com um pouco mais de sucesso, os Wings varreram os Blackhawks na primeira rodada, disputaram uma dura batalha contra o Toronto Maple Leafs e passaram apenas no jogo 7 da série. Em seguida, foram eliminados pela máquina Edmonton Oilers de Gretzky, Mark Messier e Jari Kurri, por 4-1.

O tijolo que faltava para a reconstrução total era um título de divisão. Veio em 1988 e se repetiu em 1989 com um desempenho sensacional de Yzerman — 155 pontos numa mesma temporada regular, marca só ultrapassada por Wayne Gretzky e Mario Lemieux. Mesmo concorrendo com esses dois nomes e ainda tendo rivais como Pat LaFontaine, Kurri e Messier, Yzerman venceu o troféu Lester B. Pearson e foi finalista no Hart.

Esse que deveria ter sido o período mais difícil para a carreira de Yzerman foi trilhado com uma facilidade impressionante, como se o #19 estivesse jogando pelos Islanders ou Canadiens. Definitivamente, Steve foi o responsável por Detroit recuperar um orgulho que não existia desde 1966, e que só foi revivido ao longo desses quase 20 anos em 1980, quando Howe voltou à cidade para a disputa do Jogo das Estrelas.

As primeiras dificuldades de Yzerman em Detroit talvez tenham acontecido em 1993, já na Era das Conquistas, quando Scotty Bowman veio treinar a equipe. Os dois se desentenderam no começo da parceria e Bowman reclamava da falta de empenho de Steve na hora de cobrir a defesa. A relação entre os dois foi tão crítica de início que falava-se até na possibilidade de uma troca envolvendo o jogador e o Ottawa Senators — o que seria, sem dúvida, um dos grandes erros que a franquia poderia cometer. Os Wings agora que tinham um elenco mais consistente com Paul Coffey, Vladimir Konstantinov, Nicklas Lidstrom e Vyacheslav Kozlov precisavam mais de que nunca de seu capitão. Se Yzerman foi o pilar que sustentou os Wings na hora de reerguê-los, o justo é que agora ele fosse o líder dessa futura geração vencedora. E o fato é que com algum tempo depois Yzerman desempenhou tão bem, tão bem a função sonhada por Bowman de cobrir a defesa que se tornou um dos mais versáteis atacantes da história da Liga e um de seus atletas mais completos também.

Se os desentendimentos com Bowman foram as primeiras dificuldades, certamente a primeira decepção foi a perda da Copa Stanley para o New Jersey Devils na meia-temporada de 1994-95. Os Wings iriam completar 40 anos sem conquistar uma Copa Stanley graças a um time que emergiu de forma repentina e baseado no jogo de defesa com os trancos e agarrões de Scott Stevens e a frieza de Martin Brodeur. Para piorar, o ano seguinte viu a queda nas finais de Conferência diante de uma franquia estreante e futura grande rival, o Colorado Avalanche. Foram dois anos onde o Troféu dos Presidentes, que os Wings ganharam pela primeira vez e de forma consecutiva, não serviram de consolo. O jejum ainda incomodava.

A Estrada para a Glória
Já diria o Midnight Oil na canção "Forgotten Years": Os anos mais difíceis, os anos mais selvagens, os anos perdidos e divididos... esses não devem ser os anos esquecidos. Essa música certamente define a conquista dos Wings em 1997, após uma temporada onde se viu de tudo: batalhas épicas com o novo rival Colorado Avalanche, incluindo o famoso Banho de Sangue; uma varrida na final da Copa Stanley sobre o Philadelphia Flyers e o primeiro título em 42 anos após passar pelos rivais Avs nas Finais de Conferência; título que foi seguido de um bicampeonato em 1998, com mais uma varrida na final, desta vez em cima do Washington Capitals.

Os Wings de repente tomaram as rédeas da situação e Yzerman havia se tornado um coadjuvante nessa história toda. O Quinteto Russo de Konstantinov, Kozlov, Sergei Fedorov, Igor Larionov e Vyacheslav Fetisov e os heróis do Banho de Sangue Brendan Shanahan, Darren McCarty e Mike Vernon acabaram chamando para si os holofotes da já conhecida Cidade do Hóquei.

Interessante é que foi Yzerman quem ajudou a construir essa chamada Cidade do Hóquei e esse elenco só existia ali porque a algum tempo atrás Yzerman chegou a Detroit mostrando que aquele time tinha condições de se reerguer. Tanto que mesmo com tantas estrelas, ele seguiu com o "C" no peito, e ele foi o primeiro a tocar a taça depois de 42 anos, o primeiro a erguê-la no bicampeonato, o primeiro a levantá-la em 2002 quando as zebras ainda não eram capazes de parar os Wings.

Mesmo sendo um jogador com habilidade diferenciada, Yzerman não pareceu em momento algum sentir o choque de perder as atenções para o exército vermelho de grandes heróis que aportou Detroit para mudar de vez o destino da Cidade do Hóquei. Seu papel principal havia sido feito, e dali em diante Yzerman era só mais um grande jogador entre tantos da lendária franquia vermelha. E como devia ser bom ser "um" num time com tantas estrelas.

Quando escolheu Yzerman como capitão dos Wings, Demers justificou dizendo que "queria um homem que tivesse o escudo dos Wings tatuado no peito". E a escolha não podia ter sido mais perfeita. Certamente, onde for, Steve leva também um "C" tatuado no ombro e o peso de toda uma Cidade do Hóquei nas costas.

Thiago Leal parabeniza Humberto Fernandes por seus 23 anos de idade recém-completados.
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Capa clássica da revista Sports Illustrated homenageando Yzerman após sua despedida.
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Para sempre #19: imortalizando 23 anos de Red Wings, sendo 20 deles como capitão.
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A Copa Stanley, finalmente, depois de 42 anos. A alegria havia voltado à Cidade do Hóquei.
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Em 23 anos de carreira, um único erro: encontrar e presentear pessoas de caráter duvidoso.
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Página publicada em 5 de dezembro de 2007.