Por: Thiago Leal

Não quero ter que falar de novo sobre isso. Mas o Milagre no Gelo de 30 anos atrás foi tão espetacular que todo mundo ainda comenta a respeito. Não só por a União Soviética ser um país tão superior. O fator principal nessa história é os Estados Unidos da América serem uma seleção tão inferior em termos de hóquei no gelo. Só a vitória por 7-3 sobre a Tchecoslováquia na primeira fase do torneio já era milagrosa o suficiente, afinal de contas, eles, os Tchecos, eram os únicos que tinham colhões para fazer frente aos Soviéticos.

E depois disso o quê? Nada. Os Estados Unidos da América não ganharam medalha alguma nos Jogos Olímpicos de 1984, 1988, 1992, 1994 nem de 1998. Também não ganharam uma medalha sequer entre os Campeonatos Mundiais de 1981 a 1995 e em seu histórico na Copa Canadá tem apenas uma medalha. Aliás, voltando aos Mundiais, sabe quantas medalhas de ouro os Estados Unidos tem? Duas. E apenas uma foi ganha em Mundial de fato, em 1933. A outra foi em 1960, quando o Campeão Olímpico era declarado também Campeão Mundial. Ou seja, os Estados Unidos não chegaram lá para ganhar uma edição oficial do torneio há 76 anos. Depois de 1980, o mais irrelevante que aconteceu com a Seleção Estadunidense foi chegar à final da Copa Canadá de 1991 e à decisão dos Jogos Olímpicos de 2002, quando disputou em casa, pela primeira vez desde 1980.

Alguém pode se salientar a citar a Copa do Mundo de 1996, vencida pelos ianques. Se o fizer, peço para que Mec dê uma pedrada em você. A Copa do Mundo não passou de torneios light de verão, mesmo envolvendo grandes estrelas da NHL.Até a medalha de bronze conquistada no Mundial daquele ano, a primeira desde 1962, quando também foi bronze, consegue ser mais relevante.

Santo de casa não faz milagre
Jim Craig, Steve Janaszak, Ken Morrow, Mike Ramsey, Bill Baker, Dave Christian, Bob Suter, Jack O'Callaghan, Rob McClanahan, Mark Johnson, Dave Silk, Neal Broten, Steve Christoff, John Harrington, Mark Pavelich, Buzz Schneider, Eric Strobel, Phil Verchota, Mark Wells e Mike Eruzione. Reconheceu esses nomes? Foram eles quem acenderam a pira olímpica na cerimônia de abertura dos Jogos de Salt Lake City 2002. Obviamente, não foi coincidência nenhuma colocar o mesmo time campeão em 1980, os últimos jogos realizados nos Estados Unidos, para abrir a edição de 22 anos depois. Sem uma medalha desde o Milagre no Gelo, o time americano tinha por objetivo ser campeão. Até porque o técnico era o Herb Brooks.

Capitaneado pelo defensor Chris Chelios, o time de 2002 tinha no gol Mike Richter, Mike Dunham e Tom Barasso. A defesa era completada por Aaron Miller, Tom Poti, Phil Housley, Gary Suter, Brian Rafalski e Brian Leetch. O ataque tinha Bill Guerin, Chris Drury, Adam Deadmarsh, Scott Young, Doug Weight, Kaith Tkachuk, Tony Amonte, Mike York, Brian Rolston, Jeremy Roenick, Mike Modano, John LeClair e Brett "Humberto Fernandes" Hull. Um belo time.

Se o amigo leitor se surpreendeu com a surra que os EUA deram na Finlândia nestes jogos de 2010, saiba que há oito anos ela havia sido antecipada. Sim, os Estados Unidos abriram os Jogos de Salt Lake City com 6-0 em cima dos finlandeses. Seguraram um empate com a Rússia em 2-2 e não tomaram conhecimento da Bielo-Rússia, 8-1. E olha que os Bielo-Russos eliminaram a Suécia nas quartas-de-final...

Nas semifinais, novamente a Rússia. E os EUA, que passaram pela Alamanha com 5-0 nas quartas-de-final, desta vez levaram a melhor sobre Igor Larionov e Pavel Bure. Venceram por 4-3.

O que os Estados Unidos não contavam com é que alguém tinha objetivo igual. Obstinação idem. Chegar para ser campeão qualquer um quer chegar. Ter foco no objetivo é outra coisa. Na final, os EUA tomaram uma surra de 5-2 da Seleção Canadense de Mario Lemieux, Steve Yzerman e Joe Sakic, além de todos os outros craques que aquele time tinha. O Canadá não ganhava o ouro desde 1952. Era uma questão de honra. 50 anos é muito tempo para os inventores do esporte.

E o que aconteceu depois de 2002? Nada, a não ser mais uma medalha de bronze, no Mundial de 2004. As três últimas medalhas americanas em Mundiais foram todas bronze: uma em 1962, uma em 1996 e essa de 2004.

À procura do milagre
Não dá para dizer que 2006 foi uma decepção porque os Estados Unidos é aquilo. Os ianques, mesmo sendo o segundo país com maior número de jogadores na NHL, estão atrás de canadenses, russos, suecos, tchecos e até mesmo dos finlandeses. O que aconteceu em 1980 aconteceu única e exclusivamente por causa do foco. Herb Brooks estava obstinado por aquele objetivo. Ele tinha uma mágoa em relação a 1960, quando foi cortado do time que acabou campeão olímpico, e queria ter essa mágoa sanada. E não digo isso por causa da dramatização Miracle, de 2004, que é um filme excelente, mas por causa do documentário Do You Believe in Miracles?, de 2001.

Quando você quer ganhar um título, você precisa de foco naquele objetivo. Foi assim que a Seleção Brasileira de Futebol de 1994 superou suas limitações para vencer a Copa do Mundo, mesma coisa que ocorreu com a Itália em 2006, ano em que o St. Louis Cardinals fez o mesmo até chegar à Série Mundial. Não digo que grandes esquadrões montados para conquistar um título não dê certo. O Detroit Red Wings de 1997/98, o Anaheim Ducks de 2007 e o Vasco da Gama de 1998 atingiram seus objetivos dessa forma. As surpresas também acontecem, como o Boston Red Sox, o Tampa Bay Lightning, a seleção de futebol da Grécia e o Once Caldas, todos em 2004. Mas um time focado no seu objetivo tende a treinar mais, a se preparar melhor e a corrigir seus erros. Herb Brooks mesmo disse que o time americano não seria o melhor em 1980, mas seria o time com melhor preparo. Deu certo. Não lembro se essa fala está no filme, mas na famingerada noite em que obrigou seus atletas a patinarem no rinque norueguês após um jogo onde fizeram corpo mole, Brooks perguntou se eles sentiam dor e disse que aquela era a dor necessária que quem gostaria de ser campeão olímpico deveria sentir. Até Michael Phelps declarou ter se inspirado nessa frase de Brooks em sua preparação para os Jogos Olímpicos de Pequim.

A Seleção Americana se prepararou para 2010 como quem buscava um outro milagre. O time capitaneado por Jamie Langenbrunner tinham foco, e você percebia isso pela consistência da equipe no gelo. Poucas falhas eram cometidas e a defesa trabalhava muito bem. Definitivamente, um bom preparo imposto por Ron Wilson, Scott Gordon e John Tortorella. Em suas partidas, os EUA conseguiram ser dominantes no gelo. Um outro pequeno milagre seria necessário, já que o time canadense era bem melhor. Opa! Era mesmo? Talvez a vitória sobre o Canadá, ainda na primeira fase, por 5-3, tenha ocorrido em parte por conta das falhas de Martin Brodeur. Mas, naquela partida, o time canadense não jogou tão bem quanto o americano.

Os canadenses deveriam ter foco nos Jogos Olímpicos. Saíram com essa dívida de 2006 e se prepararam para isso em 2010. Prometeram esse show. O jogo contra a Suíça mostrou que a coisa não andava exatamente desse modo e a derrota para os Estados Unidos foi o baque definitivo. No entanto, para mim aquele jogo foi a chave para o Canadá sair de Vancouver com a medalha de ouro. É irônico, mas acredito que foi a vitória estadunidense que deu foco ao Canadá. Penso que, se não tivessem vencido aquele jogo, os EUA acabariam por derrotar o Canadá na final. Aquela vitória alarmou o Canadá para que corrigisse seus erros e dessem uma surra na Rússia logo na fase seguinte.

O tal milagre olímpico não voltou a acontecer por pouco. Ou por muito, já que os canadenses não podiam se permitir perder aquela medalha em casa, então acho que venceriam a final de qualquer forma. Da mesma forma que tiveram mais concentração no objetivo em 2002, conseguiram ter mais concentração em 2010, ainda que ela só tenha despertado durante o torneio.

Talvez não sirva como consolo, mas o time dos Estados Unidos foi muito mais longe de que se esperava e mostrou uma qualidade em seu jogo que não se via desde 2002. Mais uma vez superaram limites e mostraram que o hóquei do país vem crescendo, principalmente com as recentes conquistas no juvenil. São os benefícios de trocar os talentos por seriedade. Melhor que esperar que Patrick Kane ou Zach Parise façam algo extraordinário é garantir que Ryan Miller não sofra gols e que Erik Johnson o proteja. O trabalho não foi todo desperdiçado com a derrota. O time precisa aproveitar esse momento de evolução para se firmar como um grande país praticante de hóquei (com seus atletas, não apenas com franquias). Coisa que não fez em 2002. Perdeu uma grande oportunidade. Que se aproveite essa nova chance. Dessa forma poderemos comentar a prata em 2014 não como algo surpreendente, mas como uma confirmação das altas expectativas sobre o time. Prata? Por que não ouro? Porque lá haverá alguém mais concentrado: a Rússia, que jamais ganhou a medalha de ouro com essa bandeira, e disputará os jogos em casa.

Mas sempre é tempo por novos milagres. Quem sabe na Alemanha, durante o Campeonato Mundial 2010? É difícil, mas os Estados Unidos provaram por duas vezes nesses últimos dez anos que um pouco de obstinação leva um time de hóquei a superar seus limites.

Thiago Leal pede desculpas por escrever tanto "foco" num único artigo.
ABC Sports
Durante o jogo contra a União Soviética, Herb Brooks pedia concentração a seus atletas.
(22/02/1980)

US Navy/Preston Keres
Os mesmos que acenderam a pira que abriu os Jogos Olímpicos de Salt Lake City.
(08/02/2002)

Sports Illustrated
A capa da Sports Illustrated lançada após o Milagre no Gelo não teve chamada. Palavra nenhuma definiria aquele momento.
(03/03/1980)
AP
Decepção após a derrota. Todo o trabalho foi por água abaixo? Não se os americanos souberem aproveitá-lo para a evolução do time.
(28/02/2010)
AP
Johnson e Parise: a medalha de prata não foi o suficiente para reviver a alegria de 1980. Mas foi igualmente surpreendente.
(28/02/2010)
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Página publicada em 5 de março de 2010.